Beatles Get Back — Voltando de onde veio

Se eu tivesse um podcast, gravaria um episódio sobre o documentário Get Back dos Beatles. Se fosse um youtuber, subiria um vídeo. Se estivesse em um jornal, redigiria uma matéria, faria uma entrevista… Como não tenho nada disso, e os momentos sociais estão raros para filosofar em botecos com os amigos, escrevo este post. Tenho necessidade de colocar para fora tudo que senti assistindo, à espera de comentários complementares ou discordantes. 

Em primeiro lugar, é preciso contextualizar por que o lançamento de Get Back foi algo tão aguardado e está sendo tão comentado.

Os Beatles existiram por apenas 10 anos, em uma ascendência artística meteórica, que os conduziu de boy band a um grupo dos mais talentosos e inovadores que já houve. Foram 13 álbuns lançados, o primeiro em 1963, três anos após o nascimento da banda — da água para o vinho em sete anos! The Who, Pink Floyd, Led Zeppelin e Jimi Hendrix eram contemporâneos. Então, não é que os Beatles revolucionaram sozinhos o rock e que ninguém era inventivo naquela década, como há a tendência de se imaginar. A questão principal é o impacto que uma banda extremamente popular teve. Eles conduziram o gosto de uma geração de adolescentes de uma canção bobinha como “She Loves You” a patamares mais complexos e inventivos como “Eleanor Rigby”. A música pop experimentou algo que pouco se repetiu nas décadas subsequentes. Isso é marcante e incomum.

A contribuição artística foi tanta que, quando comecei a perceber a magnitude da banda — talvez pelos meus 15, em 1989 — já fazia quase duas décadas que ela não mais existia. Uma carreira de 10 anos, que completava 30 aos olhos de alguém de 15. Sua eternidade, ou perenidade, se apresentava. Não existia mundo sem Beatles mesmo depois de seu fim. E interpreto essa percepção só agora, quando vejo minha filha de 12, 50 anos depois que o “sonho não acabou”, impactada pela permanência estética, assistindo comigo ao documentário que acaba de sair no Disney Plus. Tenho a felicidade de ser contemporâneo dos integrantes do quarteto e, minhas filhas, dos dois que ainda restam. Isso é um privilégio que só meus descendentes terão a verdadeira dimensão, quando pensarem em mim, seu antepassado, e a reverenciada obra deixada.

O filme

Claro que um material audiovisual é fruto de decisões de roteiro e de edição. Supressões, emendas, cortes, deslocamentos, tudo isso tem o potencial de contar muitas histórias diferentes sobre o mesmo material bruto que, nesse caso, era vasto. Porém, como não tenho acesso ao restante das 60 horas de filme, só resta discorrer sobre o que vi e sobre a história que Peter Jackson quis contar. E aqui, vale uma filosofada: o que é a verdade senão a interpretação de cada um sobre o que ouve, escuta, vê, sente? E se ela depende disso, quantas verdades existem sobre cada microfato? A própria definição de “fato” passa a ser questionável. Então, vamos nos basear no que o mundo está nos entregando e, nesse caso, sob o meu ponto de vista baseado no do diretor.

O áudio e o vídeo

O filme já começa com Peter Jackson deixando claro que não houve vídeo para todo áudio disponível e, por isso, precisou cobrir alguns momentos com imagens não relacionadas. Imagino o trabalho que deu, pois, mesmo eu ficando nervoso com a falta de sincronia e tentativa de grudar um final de frase com uma boca se mexendo, sei que se esforçaram para fazer o melhor possível. Já editei materiais densos e conheço a dificuldade. Para os menos introduzidos ao processo, explico o que pode ter acontecido: rolo de filme não grava áudio. E, mesmo que gravasse como as câmeras de vídeo atuais, profissionalmente, sempre se tem uma equipe para o vídeo e outra para o áudio. Então, não sei se material foi roubado, estragou, se perdeu ou, simplesmente não foi registrado em conjunto. O fato é que áudios importantíssimos (e muito bem captados por sinal) precisavam ser usados. Eles já haviam, inclusive, sido lançados em bootlegs durante os anos. Os mais malucos já os conheciam.

O maestro

Paul McCartney se mostra realmente a mola propulsora dos Beatles, o cara que leva a banda nas costas. Claro que é um retrato do final da existência da banda; talvez John fosse mais propositivo nos trabalhos anteriores. Mas ali poderia estar em um momento novo de vida, com a Yoko; mais leve, tranquilo e deixando seu amigo conduzir as coisas. Os fãs mais ardorosos de John podem não ter curtido muito essa coadjuvância de seu ídolo, mas para mim, que sempre fui muito mais Paul, está tudo certo.

No primeiro episódio, enquanto conversavam sobre onde seria o show, e algumas ideias foram lançadas, Macca deu o tom. Disse mais ou menos assim “tem que ser em um lugar meio proibido, em que a gente comece a tocar escondido e a polícia venha nos tirar, como no Senado”. Acabou sendo no rooftop, exatamente dentro desse espírito.

Harrison

A discussão com Paul (muito polida, inclusive, a meu ver), que fez com que George quase deixasse a banda, não passou de um fato corriqueiro em uma sessão de ensaio de qualquer artista. Demonstrou mais a insegurança do guitarrista, que era mais novo que os companheiros e que queria se afirmar como compositor, do que uma animosidade real. A versão do filme “Let It Be” da época tentou mostrar o contrário. Só quem já esteve em uma banda sabe que é normal. Que grupo nunca passou pelo problema da música não estar evoluindo em arranjo quando está sendo executada repetidas vezes sempre da mesma forma por todos integrantes? Paul estava apenas pedindo que fosse decidido o que fazer ou a coisa não sairia do lugar. Com o calendário apertado, novamente o baixista mostrava protagonismo na condução, querendo ser prático, objetivo e desenvolver um processo eficiente.

A composição de “Get Back” e “The Long and Winding Road”

É incrível assistir as  músicas que estão no imaginário coletivo serem compostas na nossa frente. Não tem preço, ainda mais para alguém que gosta de tocar e compor como eu. Ficava torcendo para que Paul achasse os acordes e as palavras: “Vai, Paul! Vai, Paul!”. Queria soprar a dica que “Get Back” devia voltar à primeira nota da harmonia antes de acabar a sequência de compassos, como ela é na versão final! Muito legal! Arrepiante!

A ideia do show na Líbia

O diretor da época, Michael Lindsay-Hogg, estava com a ideia fixa de realizar o show em um anfiteatro em ruínas no litoral da Líbia. É muito engraçado vê-lo tentando convencer todo mundo. Quando Paul diz que Ringo não gostaria de sair do país, o diretor logo mais aparece passando a conversa no baterista. Hilário! Ele não quer desistir da sua ideia genial. Sem dúvida, claro, seria antológico. Mas certamente, se os Beatles tivessem seguido a ideia do diretor, Pink Floyd não teria tocado nas ruínas de Pompeia quatro anos depois. Não seria inovador. E isso me fez lembrar do filme “Yesterday”, que mostra como o mundo seria diferente se os Beatles não tivessem existido. Se você não viu, veja “Yesterday”!

Ringo Starr

Ninguém questiona que o baterista era o mais tranquilo de todos. Se restingia a segurar suas baquetas e a seguir sugestões do Paul sobre como compor levadas e climas. Por outro lado, não significa que não era respeitado. Por três vezes, pelo menos, isso fica bastante claro. A primeira, e principal de todas, é que o projeto tinha prazo para ser finalizado justamente porque Ringo participaria de um filme. A segunda, que já citei acima, é quando Paul diz que é o amigo que não quer sair do país, para dissuadir a todos da ideia de gravar na África. E a terceira e mais legal de todas, é quando os quatro estão conversando sobre a sugestão de se apresentarem no telhado. Paul é contra, Lennon fala, fala, mas não deixa clara sua posição. Harrison diz que é “definitivamente” contra. Mas Ringo diz algo como “eu gostaria muito de tocar no telhado”. Pra mim o filme poderia ter acabado ali! Não haveria nada mais significativo para demonstrar a amizade que tinham, e o valor que davam ao companheiro, do que sublinhar que a palavra final sobre um dos feitos mais icônicos da carreira da banda (além da foto deles atravessando a faixa de segurança na Abbey Road) foi de Ringo Starr.

Os demais elementos

Muito legal ver como a equipe era enxuta, como a banda era simples. O engenheiro de som Glyn Johns se mostrou muito mais produtor do que o próprio George Martin, que pouco se manifesta. Inclusive o técnico deu até palpite no arranjo de “Let It Be”. O privilégio daqueles assistentes que ficavam trazendo chás e torradas é sublime. Mas o destaque maior, o mais simpático e carismático, sem dúvida, era Mal Evans, que demonstrava toda sua alegria em participar, inclusive musicalmente de alguns momentos. Mal era assistente desde a época do Cavern Club, o que demonstra a fidelidade e generosidade que o grupo sempre teve. Infelizmente, Mal faleceu precocemente, em 1976.

Yoko

Peter Jackson preferiu mostrar uma Yoko Ono calada. Ou foi a própria que só assim o permitiu. O que muitos diziam sobre ser a causadora da dissolução do grupo (e os mais entendidos beatlemaníacos não corroboram totalmente com essa versão) não se mostra neste filme. O que vemos é um casal apaixonado, parceiro, a ponto de John fazer questão de mantê-la a seu lado, mais até do acho que deveria, quando se trata de uma banda trabalhando. O núcleo de um grupo é sagrado em momentos como esse.

A rivalidade entre Paul e John

Isso é outra lenda que não aparece. Os dois se mostram bastante amigos. E não há relação animosa que consiga ser disfarçada em 22 dias sob gravação constante de câmeras. Vi em uma entrevista Paul falando sobre o filme. Ele diz que o documentário o fez se lembrar de como se davam bem mesmo, coisa que a mídia e o tempo transcorrido pareciam querer provar o contr´ário para ele mesmo. Claro que pode ser apenas conversa para boi dormir, mas não é o que a “verdade” da película demonstra.

Um material sublime

Como é bom poder ter acesso a um produto dessa dimensão. Geralmente (e é compreensível que seja assim), as escolhas de finalização primam por uma entrega enxuta, objetiva, sintética. Aqui, a imersão das quase oito horas de material nos transporta para a época, nos faz entrar em suas cabeças, viver aqueles dias com eles. É um produto para quem é fã. Não serve para quem está descobrindo a banda, claro.

Parece que Peter Jackson tem outra versão, de cerca de 16 horas, que será lançada em bluray. Nem sabia que isso ainda existia, mas é certo que já comprei.