— Ã… Ã… Alô…
— Bom dia! O senhor Carlos se encontra?
— (…) Como o senhor esteve conseguindo este número de telefone?
— Como, senhor?
— Senhor, o senhor está ligando para o telemarketing da Editora Abril. Como esteve conseguindo este telefone?
— Como assim, senhor? Aqui é do telemarketing dos cartões Mastercard, senhor. Este telefone estava constando da minha lista de prospecções. Por isso que eu tenho que estar contatando, senhor.
— Sinto informar, senhor, mas o senhor está ligando de um telemarketing para o outro. Eu não recebo chamadas. Eu faço, senhor!
— Que estranho, senhor.
— Sim. Nunca vi este telefone tocar.
— O meu também não toca nunca, senhor.
— Então, se o senhor estiver permitindo, eu vou estar voltando ao trabalho. Ainda tenho 20 contratos para fechar hoje para alcançar minha meta, senhor.
— Eu ainda tenho 34. Aqui é bem puxado, senhor.
— Bom trabalho. Até mais.
— Pro senhor também. Tenha uma boa tarde, senhor.
— Obrigado.
— (…)
— Não vai desligar, senhor?
— Eu não posso. Só o cliente pode desligar. Não tenho esta opção no sistema.
— Aqui na Abril também, senhor!
— E agora?
— Não sei. A gente tá pendurado.
— Puta… Que enrascada!
— Pior!
— Se a gente esperar um pouco, será que a ligação cai?
— Olha, não acho uma boa ideia, pois a ligação nunca cai em telemarketing.
— Na verdade, cai mais em SAC, né?
— É! Tive uma ideia!
— Hm. Fala.
— E se a gente transferir para o setor de cancelamento? Lá sempre cai a ligação.
— Eu não tenho como transferir daqui.
— Droga. Nem eu.
— Eu vou chamar o meu gerente e perguntar o que eu faço.
(…)
— E aí? Conseguiu?
— Putz! Ele não sabe. Nunca viu isso acontecer. Talvez se deligasse a central da tomada, mas todos os operadores iriam se desconectar.
— E agora? Eu tenho uma meta pra bater! Não posso perder tempo.
— Bom… Já que a gente tá preso… O senhor possui cartão de crédito? Trabalha com Mastercard?
— Não estou interessado.
— A tentativa é grátis, né?
— E a gente tá com uma promoção de assinatura da Veja. Assina por um ano e ganha três meses de Playboy. O senhor sabia que o hábito da leitura é responsável por conexões cognitivas importantes para o desenvolvimento da pessoa?
— Bom apelo! Mas Playboy eu vejo na Internet.
— Eu estou falando de desenvolvimento do cérebro e da Veja!
— Sei… Desenvolvimento do cérebro… Pior, por isso a Playboy tá quebrando. Todo mundo vê na Internet. Que promoçãozinha de merda, hein?
— Depois ainda querem que a gente bata a meta.
(…)
— Senhor, se a gente conseguir desligar, o senhor pode estar me atribuindo uma nota de zero a dez para este atendimento?
Etiqueta: crônica
Cascas de Feridas — Oficina do Carpinejar
Neste fim de semana, participei da Oficina de Crônicas de Fabrício Carpinejar, em Pelotas. Foi muito bacana. O cara é fera e fez com que muitos de nós quebrássemos alguns paradigmas pessoais.
Abaixo, publico o exercício do primeiro dia. Tivemos 10 minutos para escrever sobre um de nossos defeitos. Após a última linha, coloco o final alternativo sugerido pelo “professor” e, sem dúvida, melhor que o meu.
“Arranco todas as casquinhas. Sim, casquinhas. Daquelas de ferida. Não resisto. E olha que tenho muitas. Até as fabrico só para poder cavoucá-las. Minha matéria-prima preferida são picadas de mosquitos. Dão uma coceira enorme. E o melhor é que sou alérgico. Isso facilita o processo. Quando recentes, aproveito a unha mais saliente e faço uma fenda. Fica parecendo uma bundinha. Depois, faço outra e vira uma marca em xis. Mais um outro xis envesado e tenho um asterisco. Nossa, como é bom! Ela fica vermelha. E pulsa. Como pulsa, meu Deus! Quando alivia, começo tudo de novo. Dezenas de vezes.
Com esse processo metódico e paciente, toda picada de mosquito no meu corpo vira uma casquinha de ferida. Quando acontece, posso arrancar em ritual sádico. E sabe o que é melhor? Elas voltam! Sempre voltam!
Tenho uma grande cultura de casquinhas que mantêm sob controle meus instintos mais primitivos.”
Final alternativo:
“Durmo de janela aberta.”
O Quarto Escuro
Entrei no quarto escuro. Puro breu. Fui tateando as paredes, sentindo a textura, procurando pistas do que havia ali. O tato dizia que a tinta era preta. Será? Com o pé, senti o rodapé. Devia ser preto também, pois não refletia nada. O piso, liso, mas não escorregava. Não era parquet, pois parquet a gente sente as tabuinhas. Também não era carpete nem lajota. Não fazia inhec-inhec, então, não era emborrachado. Não havia janelas, marcos nem tapetes. Em pouco tempo, já não sabia mais onde era a porta por onde entrei. O lugar era grande. Me desnorteei. Voltei, fui adiante. Cruzei a sala pelo meio, mas do outro lado parecia tudo igual. Continuei pelas paredes e achei uma saliência. Um cartaz. Não, uma plaquinha de sinalização, talvez. Lembrei do celular no meu bolso. Liguei para iluminar. Era uma placa, mesmo. Dizia: “não use flash”.
Todo Homem que se Preza
Todo homem que se preza tem um cortador de unhas. Só seu. E tem orgulho. Compara com os dos amigos. Gaba-se. Cortará suas garras, semanalmente, 52 vezes por ano, aproximadamente.
A melhor forma de configurar uma tradição, é ganhá-lo de seu pai. Mesmo que não seja o dele. Mas, certo, há de ser melhor. Maior, pelo menos. Além de mais imponente. Daí veio o meu.
Não se compra um cortador de unhas. Ele vem. De uma forma ou de outra, você o reconhecerá só de olhar. Será aquele que tentar te matar; que é preciso domar para que não fira sua pele nem avance demais o corte. Você não se conectará a ele por USB, nem pelo cabelo, como em Avatar, mas pelas cutículas molhadas, salientes e inchadas pelo banho.
Homem que é homem não usa o alicate de sua mulher. Ela é que recorrerá ao seu, pedinte, quando desprevenida.
Todo homem que se preza tem um cortador de unhas. Só um. E o terá até sua morte.