O problema da saúde do país não é a falta de verba e não é (só) a roubalheira generalizada. O problema da saúde do país é a média da qualidade dos profissionais do meio. Existem 3 tipos de atendimento médico no Brasil: o público, pra quem é mero mortal; o de convênio, para quem é mortal; e o privado, para quem é quase imortal. Se incompetências e irresponsabilidades acontecem no nível médio, imagino o que não ocorre de muito mais grave, também no nível mais baixo e que ninguém fica sabendo.
Esta semana, passamos por um perrengue com nossa filha de um ano. Tenho necessidade e obrigação, como pai e cidadão, de contar aqui. É um depoimento quase ingênuo frente a tantos outros casos muito mais graves que acontecem todo dia, mas é a experiência que eu tive e que posso relatar. Fui escrevendo quase que simultaneamente aos acontecimentos, depois que me dei conta das barbeiragens sendo cometidas, muitas delas sob a “justificativa” do conceito de “pronto-atendimento”. Pulei várias, pois só conturbariam e aumentariam ainda mais a história.
Cronologicamente:
– sábado, 21h, percebemos Alice com febre. Mais de 38°C. Começamos a administrar Tylenol e Alivium, intercalados, de 3 em 3 horas, já que persistia. Damos alguns banhos para não perdermos o controle;
– domingo, depois do almoço, como não baixa de 38°C, levamos no pronto-atendimento da PlanoB (nome fictício trocado para proteger inocentes – no caso, eu). Sabemos que são necessárias 48h de febre para que o quadro infeccioso se manifeste em algum órgão e possa ser diagnosticado com maior precisão, mas a temperatura é alta demais. Ela é examinada pela plantonista da pediatria que nada encontra. Aconselha regressarmos no dia seguinte caso mantenha-se febril;
– segunda, pela manhã, a temperatura regride, mas ao meio-dia volta com força total (mais de 39°C). Voltamos à PlanoB. A plantonista não quer examinar Alice, alegando que é muito ruim clinicar em uma criança com febre. Devemos baixar a temperatura antes. Lá mesmo, após aguardar sem sucesso o efeito da dipirona na veia, damos banho, fazemos compressa, mas nada;
– segunda, 17h (aproximadamente), troca a plantonista. A nova aceita examiná-la, mas sem encontrar manifestações, nem mesmo de meningite. Chama uma colega que confirma o diagnóstico negativo. Ambas veem na garganta alguns sinais, mas concordam que a infecção não está ali. Pedem um exame de sangue e de urina a serem feitos de imediato no local. Assim é feito. Não pedem hemograma de cultura, para definir, em caso de infecção por bactéria, o tipo. Esse tipo de exame não é mais permitido no pronto-atendimento da ClínicaB. E continuamos no combate à febre: banho, compressa, antitérmicos;
– segunda, 18h30min (aproximadamente), os exames ficam prontos. O de urina não acha nada, mas no hemograma, a contagem de leucócitos (indicativo de infecção) está altíssima – mais de 21 mil. A médica solicita um raio-x do pulmão, já que pelo estetoscópio nada se percebe;
– segunda, 19h (aproximadamente), troca o plantão. Assume o Dr. Cínico (o nome foi trocado para proteger um inocente – ou dois: eu e minha esposa). O raio-x nada mostra. Ligamos para o pediatra oficial da Alice que está viajando (Carnaval), Dr. Flávio Chiuchetta (este nome não foi trocado pois ele é inocente e só vai receber elogios aqui). Pede que seja chamado um neurologista para averiguar, com propriedade, a possível meningite, já que não pode fazer a distância. É claro que a PlanoB não dispõe de neurologista de plantão, nem in loco, nem fora. Precisamos sair à cata de um. Passamos pelo mesmo problema no final de janeiro, quando meu pai teve um microaneurisma sem grandes consequências. A PlanoB não tem competência nem para fazer ligações telefônicas, quanto mais para encontrar um dos escassos neurologistas da cidade no feridão de Carnaval. Quando falo em não saber fazer uma ligação é pelo seguinte: o médico da Alice estava em um sítio fora de Pelotas, mas em um local com o código de área também 53. Avisamos que era necessário digitar o código. Elas não conseguiram. Tivemos que fazer do nosso próprio celular que mal pegava dentro do prédio. Quanto ao neurologista, conseguem contato com apenas um que diz poder ir. O mesmo que uma amiga nossa também consegue.
– segunda, 23h, nada do neuro. Dr. Chiuchetta (por DDD) e Dr. Cínico concordam que Alice deve ser internada (para nosso pavor) e iniciar imediatamente a administração de dois antibióticos (rifocin e garabicina), um específico para meningite e outro de amplo espectro (full range, digamos). A intenção é combater a potente bactéria de imediato, mesmo sem saber o nome dela, nem onde está alojada. É tipo como destruir Bagdá para matar o Saddan Russein. Mas era a atitude mais inteligente no momento (a do antibiótico, não a das bombas no Iraque);
– terça, 00h30min (aproximadamente), a PlanoB e o Dr. Cínico, finalmente conseguem autorizar nossa internação, uma hora e meia depois de decidido, com a agilidade de quem vai atender um caso de unha encravada. Pergunto ao Dr. Cínico se ele não irá examinar Alice, visto que estamos esperando que, a qualquer momento, haja manifestação do quadro infeccioso em algum órgão. Ele responde que não, pois ela já havia sido examinada. Questiono que isso faz mais de sete horas e que foi por outro médico, não por ele. Mas retruca não ser necessário. Fico puto, afinal, os sinais na garganta avistados pelas plantonistas anteriores, podem ter evoluído e serem, enfim, observados. A internação e administração dos medicamentos são feitas e assinadas por alguém que não examinou minha filha.
A partir daí somos extremamente bem atendidos no Hospital São Francisco de Paula graças a Elói Tramontim, diretor do complexo, e sua gentil equipe. Ficamos aguardando a visita do Dr. Cínico, já que o Dr. Chiuchetta só volta à cidade na quarta.
Continuando:
– terça de manhã, o neurologista vem. Faz todos os exames clínicos e nenhum deles aponta para meningite. Desaconselha punção na medula, por tratar-se de uma criança, doer muito, os riscos de contaminação pelo processo serem grandes e de não existirem sinais clínicos para o quadro diante de uma contagem tão expressiva de leucócitos. Pede exames de sangue diários para acompanhar a evolução da infecção. Gosto disso;
– terça à tarde, depois de uma solicitação minha via telefone e das exaustivas (para não dizer subumanas) mais de 20 horas de plantão que fez na PlanoB, Dr. Cínico aparece para ver Alice. Esquece o hemograma feito dia anterior no carro. Usa apenas o estetoscópio no exame, conversa um pouco e vai embora, dizendo que é isso aí mesmo. Trocando em miúdos, não a examina de novo. Está claro o que eu digo? O médico que internou minha filha, prescrevendo dois potentes antibióticos na veia, expondo-a a riscos de contaminação hospitalar por um prognóstico de, no mínimo, sete dias, além de todo o abalo moral e físico nosso e da nenê, NUNCA a examinou;
– quarta, ao meio-dia, como prometido, Dr. Chiuchetta retorna de viagem assumindo o caso. Faz um exame clínico completo e, ao olhar a garganta, diagnostica: “acredito que é um quadro viral”. Quase caímos no chão. 38 horas e o Dr. Cínico não pôde olhar a garganta e verificar a virose. Dr. Flávio solicita novo exame de que ficará pronto só no dia seguinte. Precisamos manter a medicação e a hospitalização até, pelo menos, a comprovação da hipótese. Dr. Cínico não aparece mais, para o bem dele;
– quarta, à tarde, Dr. Neurologista volta, examina novamente e traz uma novidade: o exame que solicitou no dia anterior mostra a contagem de leucócitos em 4 mil e pouco, ou seja, sem infecção.
– quinta, 13h, Dr. Chiuchetta a visita novamente. Exame completo mais uma vez. De posse do primeiro, segundo, terceiro e de um primeiríssimo exame, anterior a tudo isso, feito na sexta por simples rotina, conclui que ela teve um quadro bacteriano seguido de outro viral.. Precisará ficar, pelo menos, até sábado internada, quando teremos nova avaliação. Nessa hipótese, completará os 10 dias de antibiótico intravenoso em casa.
– sábado, 4h, Dr. Chiuchetta aparece de surpresa. É madrugada. Brincando, diz que perdeu o sono e resolveu visitar. Era brincadeira. Ele estava lá por ocasião de um parto. Mas resolveu passar para dar uma olhada. Esse tipo de coisa demonstra o comprometimento e carinho que deve ser inerente à profissão de médico;
– sábado, 14h, Dr. Chiuchetta vem, como combinado, avalia os exames e dá alta à Alice. Graças a Deus, estamos indo pra casa.
Dr. Cínico não identificou o quadro viral e nunca teria, pois mal tocou em Alice. No final das contas, acabou por não fazer diferença prática alguma, devido à natureza dos problemas. Porém, poderiam ser outros e muito mais graves, coisas que exames clínicos podem diagnosticar. Todos teríamos ficados mais tranquilos e seguros quanto ao que estava sendo feito.
Odeio pediatra que chama a gente de “mãe” e “pai”, “mãezinha” e “paizinho”. Onde, que porra, aprendem isso? Pra mim, é o primeiro sinal de incompetência. Dr. Chiuchetta, meu herói (mais do que o Homem-Aranha ou o Superman), não nos chama assim. Na verdade, ele não chama. Se muito necessário, talvez um “psiu”. As crianças adoram-no. Os pais também.
Se você está pensando em ficar doente no Carnaval, esqueça. Mesmo sem ser feriado oficial em nenhuma esfera, nem mesmo na terça-feira, é o “feriadão” mais importante e institucionalizado do Brasil. Atitude bem adequada ao país. Muito mais importante que véspera e Natal somada a um fim de semana. Nas comemorações de fim de ano, muitas pessoas ficam na cidade, pois passam com as famílias. No pseudoferiadão da “festa da carne”, todos viajam. Inclusive os médicos. Principalmente os bons. Justo. Os não tão bons ficam de plantão fazendo jornadas subumanas e sendo displicentes com os clientes, cada vez mais pacientes. Incompetência e prepotência é uma combinação bombástica na área da saúde.
Eu não diria que ser plantonista da PlanoB é uma forma fácil de se fazer dinheiro (para uns mais fácil que para outros), mas, com certeza, é rápida e indolor. Pelo menos para quem não tem sentimentos.