Deixa pra Lá

O que leva um diretor a fazer um remake de um filme recente que já foi muito bem executado? No caso de “Deixa Ela Entrar” (“Låt Den Rätte Komma In”, Suécia, 2008) e “Deixe-me Entrar” (Let Me In, UK/EUA , 2010), a única opção que cogito é a língua; é atingir um público maior. O original é sublime, perfeito, irrepreensível. Às vezes me pego no cinema pensando “poxa, aí eu faria diferente”, “por que fizeram assim?”. Talvez esse tipo de inquietação tenha afligido o diretor Matt Reeves (diretor do excelente Cloverfield). Porém, 80% das cenas são praticamente as mesmas – algumas nos mesmos ângulos, em locações parecidas, nos diálogos. Nos outros 20% ele mudou coisas que não acrescentaram em nada, pelo contrário; para quem viu o sueco, deixaram a desejar. Uma cena quase idêntica, mas bem pior na refilmagem é no ato final, quando se dá a “vingança” (sem spoils) – Tomas Alfredson foi muito mais feliz na escolha dos planos. O silêncio também é muito mais bem explorado pelo sueco. No sucessor, há trilhas e efeitos em demasia. Quanto às atrizes, temo em dizer que, apesar do excelente trabalho em Kick Ass, a atriz mirim Chloe Moretz não convence tanto como Lina Leandersson no papel  da vampirinha. Não estou dizendo que seja pior atriz, mas talvez seja uma questão de perfil.

Em época em que vampiros pegam sol e brilham como purpurina, é um alívio saber que não é preciso abrir mão dos preceitos básicos vampirescos para se fazer um filme contemporâneo, emocionante e cativante.
Na real, os dois são ótimos. Aconselho que se veja os dois. Mas o sueco antes. Nem que seja por respeito à ordem natural das coisas.

6 Anos

Texto minha mulher, Stela, sobre nossa filha, Malu.

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Existem várias fases marcantes para uma mãe no desenvolvimento dos filhos. Lembro quando a Malu fez 10 meses e começou a ficar mais independente, se locomover sozinha, fazer suas próprias escolhas. Fiquei um pouco chocada porque percebi que ela era, realmente, um ser à parte de mim. Senti como um segundo parto; minha filha de deslocando do meu espaço físico. Depois teve a fase dos 3 anos. Mais comunicativa, interagia, conversava, “trocava ideia”. Aos 5, com a formatura do pré-escolar, chorei pela primeira infância se acabando, e logo pensei que a minha princesa estava deixando uma das fases mais lindas da sua pequena vida.

A partir dali fiquei aguardando a chegada dos 7, quando, imaginei, outro grande salto aconteceria. Só que ontem, me vi tão apaixonada pelos 6 anos da Malu que fiquei surpresa e feliz em reconfirmar que, felizmente, cada nova fase na vida de uma criança nos traz ainda mais novidades. O rostinho dela está inegavelmente diferente. Não é mais tão redondinho, começa a perder as formas mais infantis. O corpo também já demonstra as primeiras mudanças.

Mas o mais evidente, são as mudanças de comportamento. Não sei bem o quê, mas em determinadas horas ela faz gestos, expressões, colocações que mostram que já está mais atenta ao mundo adulto. Mesmo que brinque, salte, pule feito uma macaquinha. Às vezes, olha para a irmã de 2 anos com aquele olhar de compreensão e admiração que só os mais velhos possuem. Não é uma atitude de compartilhar, de rir da mesma brincadeira, é de admirar e perceber o quanto a irmã dela está crescendo. No banho, ao comer, ao arrumar suas coisinhas. Já é um pequeno adulto em busca de seu espaço. E, surpreendentemente, me senti fascinada e feliz por estar feliz em ver minha filha crescendo. Diferente de tantas vezes em que desejei que ela fosse para sempre pequena e minha, fiquei a criar e imaginar como ela será no futuro. Quanto ela ainda me surpreenderá? Como será cada nova fase?

Adoro tê-la ainda em meus braços, mas vejo que cada vez mais meu colo fica pequeno. E assim, conforme ela cresce, vamos também aprendendo a trocar novas formas de carinho, a nos amar e perceber que nessa relação ainda somos jovens aprendizes.

O Grande Pai Surf

A criatividade surfista é incrível.

— Em época de maré baixa, nos anos 60, os surfistas da Califórnia inventaram o skate.
— No frio do inverno, também nos anos 60, surfistas da Califórnia, deslocados geograficamente, inventaram o snurfer (snow + surf), que depois foi rebatizado de snowboard.
— Em lugares sem onda mas com vento, de novo nos anos 60 (ah, que década efervescente!), surfistas da Califórnia cravaram uma vela em uma prancha e fizeram o windsurf.
— Para os dias de pouca onda, no final da década de 70, o surfista mais esperto da Califórnia, pegou um snowboard, amarrou-se em uma lancha e criou o wakeboard.
— Na Califórnia, um surfista empinador de pipas, na década de 80, roubou uma lancha e inventou o kytesurf.
— Na Califórnia, nos anos 90, a mãe de um surfista ficou doente e não lavou as roupas do filho. Como tinha que ir a uma festa irada, o prodígio inventor foi iluminado: pegou o ferro de passar e uma camisa florida do cesto de roupas sujas, estendeu-a sobre sua prancha e criou (ou acha que criou) a tábua de passar roupas.

Real Pode Ser o Que Se Imagina

Uma parte do mundo parou pra ver. Outra se mexeu pra ver. Quem não viu na hora, viu depois, mas todos viram. Uma moça linda e um moço semicareca casaram-se sob olhares curiosos, brilhosos e chorosos da humanidade.

Os ferinos, os críticos, os filósofos mal-humorados, os chatos — eu — e os infelizes não implicaram, não se opuseram, não traçaram inconveniências nem incompatibilidades com tristes acontecimentos paralelos mundiais. Calaram-se, reverenciaram, mesmo mudos.

O que ficou não foi um balanço positivo na imagem da realeza do Reino Unido, nem um incremento no estereótipo do inglês pontual e educado. Muito menos foi vendido futilidade, inadequação ou ostentação. A mensagem que ficou foi da pureza e da felicidade; um retrogosto de amor; inspiração para a humanidade, seu caminho, solução.

Eu senti assim. Me fez bem. Kate e William só me trouxeram pensamentos bons. Como me pareceu, pra outras pessoas também.

Mas que ele tá ficando careca em ritmo alucinante, tá.

Um Bife ou Um Tapa na Cara

Entrecot é a melhor carne do mundo. Pra qualquer coisa. É 70% da carne que compro. Macia, saborosa, suculenta, quando bem feita.

A babá (substituta temporária) de minhas filhas acumula mais uma função: a de fazer nosso almoço. Porém, não sabe fritar um bife. Isso me deixa nervoso. Chego em casa correndo, o almoço tem que estar pronto para que eu tenha alguns minutos de descanso no sofá antes de sair para leva a Malu no colégio. A cronometragem nem sempre dá certo, o que me estressa. Somando com um bife malfeito, piora. É claro que, delicadamente, eu já tentei ensinar, mas convencer uma pessoa que cozinha há décadas de que ela não sabe fritar um bife, sem dar um tapa na cara dela, é tarefa para anos de terapia.

Como tudo na vida, a simplicidade é que faz as melhores coisas. É menos trabalhoso fazer um bom bife do que uma sola seca e beje. É só colocar a caixola pra funcionar. As instruções talvez sejam maiores, pois para fazer do jeito errado não precisa de instrução. Mas depois de pegar o jeito, verá que é a forma mais fácil.

1) Se você é um iniciante, corte na espessura de 0,7 a 1 centímetro. Para bifes mais altos você precisará de mais prática.
2) Tempere com sal. Pouco.
3) Com a frigideira bem quente, deite o bife em um fio de óleo.
4) A quantidade a fritar por vez não deve cobrir mais que 50% da superfície da frigideira, caso contrário a água liberada não evaprará rapidamente e o bife irá cozinhar ao invés de fritar. Você não quer isso, certo? (Se você não sabe a diferença entre fritar e cozinhar, desista da cozinha e viva de McDonalds).
5) Depois de estar na frigideira, só toque no bife 3 vezes. Essa história de cutar a carne com um garfo freneticamente não serve pra nada além de tirar o suco interno do inidivíduo. Também não tampe, nunca. Foda-se o fogão. Vai sujar mesmo. É o ônus. Isso é fritura.
6) O primeiro choque com a chapa quente deve ser ligeirão; um susto. É só para selar um dos lados e conter a saída da água. De 5 a 10 segundos tá bom. Depois vire (este será seu primeiro toque no bife).
7) O segundo toque leva mais tempo, pois este lado deve ficar pronto por completo. Você não voltará mais a ele.
8) A última vez que tocará na carne antes de frita é para aprontar o primeiro lado que você só selou.
9) O nosso amigo deve ficar ligeiramente avermelhado por dentro mas tostadinho por fora. Isso só se consegue com fogo bem alto. Carne bem passada é carne seca. Se você não tiver uma boca de fogão potente, terá que pré-aquecer a frigideira por muito mais tempo. Dependendo, talvez nem consiga um bom bife.
10) Nas primeiras vezes, precisará tocar algumas vezes na carne com um garfo, para que a firmeza lhe indique o ponto certo. Nas próximas, você saberá só de olhar.

Obs.: a primeira fritada não fica tão saborosa quanto as seguintes, pois a crostinha que vai criando na panela adiciona sabor especial.

Megashows Sucks (ou: Recalcado Por Que Não Vou Ver U2)

Quando uma grande banda que gosto vem pro Brasil, meu instinto grita para ir. Ter perto de mim aquele som que tanto ouvi, ao vivo, visceral; ver ídolos próximos; sentir a vibração das pessoas que compartilham o mesmo meu sentimento, nos mesmos pontos das músicas que eu ou em outros. Isso me faz muito querer, gastando o dinheiro que for (quando tenho disponível). Mas sempre me decepciono. Não com o artista.

Geralmente, os concertos são em estádios, o que torna a sonorização impossível de ser feita com uma qualidade aceitável. Você também não consegue ficar próximo do palco se não arcar com um ingresso pra área VIP. E quanto a compartilhar o momento mágico com o público que ali está, esqueça. Megaeventos atraem 90% de curiosos contra 10% de fãs de fato (estatística totalmente tendenciosa inventada por mim mesmo). Me irrito com as pessoas que vão apenas pela festa, pela cerveja, pelas gatinhas ou para fazer parte da história.

É por isso que o meu sonho é ver m show do Roberto Carlos em um navio. Não que eu seja fã do Rei, mas quem mais de renome, que mereça ser visto, toca em um espaça pequeno, com acústica privilegiada e sem cobrar uma fortuna pelo ingresso?

Os únicos shows memoráveis que já tive oportunidade de assistir, com qualidade irrepreensível, foram:

Procurado Vulgo, em uma das primeiras Fenadoces, na Associação Rural (o primeiro show de rock da minha vida), em Pelotas;
Titãs, show do O Blesq Blom, no antigo Teatro Avenida, em Pelotas;
Fito Páez, show do Circo Beat, no antigo Engenho Santa Ignácia, em Pelotas;
Sting, show do Mercury Falling, em Paris, em um ginásio poliesportvo em Bercy;
Djavan, show do Novena, no Teatro do Sesi em Porto Alegre;
Vitor Ramil com Paulinho Moska, juntos no mesmo palco, no Teatro da UFRGS em Porto Alegre;
Fernanda Takai, show do Onde Brilhem os Olhos Teus, no Teatro do Bourbon Country, em Porto Alegre;
Jorge Drexler, show do Cara B, no Teatro do Bourbon Country, em Porto Alegre.

Eu não estou citando Weezer, que vi em Curitiba, apesar de ter curtido pra caramba, pois não eram as melhores condições acústicas. E ficaram fora dessa lista, por razões que expliquei acima, U2 Pop Mart em Buenos Aires, The Police no Maracanã em 2009, Seupultura/Ramones/Raimundos, juntos, no Gigantinho em Porto Alegre, e diversos outros de menores proporções, como Ultraje a Rigor, Kid Abelha, Nei Lisboa, Biquni Cavadão, Fausto Fawcet, Lobão, Living Colour, Faith no More, Paralamas, Capital Inicial, Pato Fu, Nenhum de Nós, Ed Motta, Caetano Veloso, Nando Reis, Mutantes, 14 Bis, Kleiton & Kledir, Los Hermanos… Cito os piores de todos: Barão Vermelho, no ginásio da Associação Rural de Pelotas, e Fito Páez, no Pepsi On Stage em Porto Alegre, não por culpa dos artístas, mas das condições acústicas. Que fique claro.

Atualmente, o único local que é possível de ter um show de qualidade em Pelotas é no Theatro Sete de Abril, e depende muito do técnico de som. Em Porto Alegre, temos três: o Teatro do Sesi, da UFRGS e do Bourbon Country. O Opinião ainda dá, quando o técnico coopera.

É por isso que eu não entro mais em frisson quando um artista anuncia sua vinda para as bandas de cá. Primeiro e avalio o local, depois o artista.

O homem, a grade e o Doritos

imagem meramente ilustrativa

Em frente à agência, bem na esquina, tem um estabelecimento suspeito. É um misto de boteco com minimercado. Como a padaria mais próxima fica a três quadras, às vezes nos arriscamos por ali. Dá pra comprar biscoitos Zezé, pães industriais, Coca-cola… Os mais corajosos ousam croquetes, esfirras com recheio “pincelado” de molho de tomate ou algum pastel folhado emplastado de gordura. Só mesmo desejo de grávida pra validar.

O dono é um tipo sério, de pouca conversa; centrado, mas ruim de troco; jovem, mas sempre com a testa franzida. Com medo de assaltantes (ou fiscais), mantém a porta de grade sempre fechada, que abre remotamente por um botãozinho qualquer quando um cliente se aproxima.

No dia mais quente do ano, não aguentou o calor: tratou de pegar uma cadeira plástica, da Kaiser, e escorou a porta gradeada, 99% vazada, garantindo que não fechasse e que o ar circulasse melhor. Certo que foi baseado nos túneis de vento para testes aerodinâmicos da Fórmula 1: resistência próxima do zero.

O tipo não tem o mínimo senso de humor. Procurando por um Doritos, achei um pacote híbrido: “Doritos+Ruffles+Baconzitos”. Bãã! No primeiro relance, não entendi bem e perguntei do que se tratava, mais para puxar assunto. Respondeu seco: “é tudo junto misturado”. Tentei fazer graça: “Ah, achei que era Ruffles com sabor Doritos”. Ele respondeu: “Não, não.” Poxa, juro que me esforcei para arrancar-lhe um sorriso. Pelo menos saí de lá com uma ideia para a promoção “Faça-me um Sabor” da Ruffles: “sabor Doritos”. Inscrevi.

— Quer uma sacola?
— Não precisa. Obrigado.

Menino! Seis anos! Barato!

Chegamos com minha filha ao colégio. Na porta, minha mulher lembra: “Putz, hoje tem aniversário de um coleguinha! E o presente?”. Quem tem filho pequeno sabe que toda semana tem uma tarefa-surpresa para os pais: é um tema, uma demanda de materiais da papelaria, uma garrafa PET que nunca tem em casa, ou o aniversário de um coleguinha que você mal sabe quem é.

— Vai tu ou eu na Vanguardinha comprar um livro? — perguntei.
— Vai tu, que é mais objetivo.
— Com certeza, sou! — e saí em disparada.

Entrei na loja esbaforido e abordei a primeira vendedora que vi:
— Menino! Seis anos! Barato!

Acostumada, imagino, a pais em perigo constante, captou minha mensagem e de pronto respondeu:
— Aqui! Piadas! R$12!
— Vou levar!

Roubei e Matei

Foi no supermercado. Em minha última ida semanal. Como de costume, comprei uma caixa com 12 litros de leite; lacrada; pesada. Também levei outros 10 litros com 90% a menos de lactose, para as meninas. Esses, avulsos.

Como sempre, na hora do caixa, tiro um da embalagem, para não ter que colocar a dúzia inteira sobre o balcão, e digo à moça: “são doze”. Fiz o mesmo com a dezena dos outros: “e deste são dez”. Ela computou. Porém, incrédula, pediu: “posso olhar?”. “Hf! Claro.” Constatou a caixa violada por um e aprovou. Olhou para os avulsos e contou: “um, dois, três… dez; ok”. Imagina. Era a primeira vez que alguém desconfiava de mim no supermercado. Devia ser meu shorts vermelho surrado ou meu chinelo pós-trabalho. Também já estava na hora de cortar o cabelo, pensei. Por outro lado, fiquei aliviado — havia passado no teste. Imagina se eu tivesse contado errado; que vergonha seria.

Ao descarregar as compras para o porta-malas, pego a caixa de leite e sinto algo melado nas mãos. Era mais espesso que leite. Não era leite. Olho para o fundo gradeado do carrinho e lá estavam: dois croissants estrebuchados dentro do saco da padaria, como por um rolo compressor. O sangue vermelho-goiabada esguichava de seus corpos.

Roubei e matei dois turistas franceses em uma Quarta-feira de Cinzas.