Difícil algo prender minha atenção no cenário musical atual. Até as novidades mais inventivas soam como cópias de outras. Me falta também dedicação para insistir mais vezes e aumentar as chances de assimilação do novo. Nessa situação, é preponderante que a primeira audição seja arrebatadora. E esse foi o caso de “Amarelo”, do Emicida (cuja forma gráfica é “AmarElo”).
Já havia me encantado o anterior “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa…”, segundo álbum do artista. Mas este terceiro, com nome de cor, tocou ainda mais forte.
O primeiro ponto é o reforço na coerência da carreira. Quando os valores de uma obra são transmitidos para a seguinte e, de forma ainda mais contundente, consolidam a linguagem e qualidade do artista; se percebe que o talento é consistente e não passageiro. Isso é o ponto um.
Mas o mais importante, óbvio, não é o culto ao artista, mas sua obra.
“Amarelo” arrepia a cada verso, a cada escolha melódica e de arranjo. Sou um entusiasta da mistura de docilidade com vigor. Emicida entrega isso de forma perfeita — é essa uma de suas marcas.
Valorizo a melodia. Por isso, de forma geral, não me encanta estilos ligados ao rap. Uso “rap” aqui, pois é a origem do cantor, mas sinceramente, por isso que falei, vejo uma evolução do estilo com Emicida. São “canções”! Têm melodia sem perder a força da palavra, atributo essencial para o estilo musical do hip hop. Emicida também é literatura. E da mais alta qualidade!
Mas também não é só isso. O valor da obra não está só na forma genial com que está redigido, mas no conjunto: no passo melódico acima do esperado, nos arranjos, nas misturas, nas escolhas bem feitas. Pois se fosse, talvez, para mim, ainda não bastasse.
Emicida não canta a minha realidade, nem minhas questões pessoais gerais. Mas sabe dialogar e transmitir, para pessoas como eu, que também não fazem parte da realidade que ele canta, os temas tratados. Não sei nem se estou autorizado a tratar de um assunto que não domino, mas isso talvez seja o mais importante no trabalho dele: transbordar os temas para outras esferas, não ficarem confinados ao gueto, dar visibilidade. A música e a literatura brasileira estão repletas de exemplos de artistas que souberam trazer à tona realidades do povo brasileiro tão diversas em nosso país.
Por que eu estou escrevendo isso? Porque quando escuto Emicida, eu fico com o peito transbordando. Só isso basta.
Amarelo é a cor preferida de minha filha menor, que tem uma musicalidade aflorada muito grande e escuta as novidades comigo no carro. Aproveito os momentos para nutrir, da forma mais variada que consigo, a curiosidade artística dela. Percebo, por seu silêncio, que os ouvidos estão atentos enquanto o olhar atravessa distante a janela.
“Tu sempre tem uma coisa diferente, né, pai?”
Emicida é arrebatador!