As árvores passam rápido e perto. Bastante, até. O canteiro central fica bem próximo à avenida. Não estou muito acima da velocidade permitida. Só um pouco. Como sempre. É trânsito de meio-dia. Não é uma grande cidade, mas é trânsito de meio-dia. Daqui a uns trezentos metros tem uma escola. As crianças vão para casa pela calçada. Atravessam a rua. Correm. Oitenta quilômetros por hora não parecem mais tão seguros assim. Deve ser por isso que as placas limitam em sessenta. Imagino uma criança surgindo de trás de uma árvore, distraída, fugindo de brincadeira. Eu não tenho tempo de frear. Algo bate no meu capô. Tudo rápido. Imagino. Visualizo. A criança. Fico em choque. A criança. Desespero. Lembro da minha filha. Poderia ser ela. Mas não é ninguém. Só minha cabeça. Seria horrível. Acabaria com a vida dela, da sua família, com minha vida. Viveria com isso pra sempre. Um pesadelo eterno. A culpa, o remorso. Vergonha. Desculpas inúteis. Engulo seco. Fico ofegante. Poderia acontecer. Poderia ter acontecido. Costuma acontecer. Todo dia. Em todo lugar. Poderia estar acontecendo. É só uma questão de azar, de acaso, de circunstância. Num segundo, tudo bem. No outro, o inferno. Num instante a alegria da criança. No outro, a dor. Sofro com a possibilidade. Parece que aconteceu. Que horror! Reduzo. Passo no quebra-molas. Foi tão forte. Tão real. Nunca senti isso. Seria uma visão? Será que as visões são assim?
Eu não dirijo, mas SEMPRE que tô na carona de um carro, imagino crianças e cachorros desavisados voando sobre o capô. Eu imagino um ciclista caindo, tombando a cabeça exatamente na linha da travessia da roda. Bem ali. Eu imagino pombos que não voaram a tempo do carro passar. Eu tenho muito essa sensação de já ter atropelado muita gente, também. Com barulho, com texturas e com tudo.