Publiquei o texto “Linhas” em 13 de janeiro de 2007 neste blog. Tinha-o como um dos meus melhores, na lembrança. Hoje, resolvi reler. Que vergonha! Ainda gosto do argumento, mas que coisa mal escrita. Como a gente pode evoluir tanto em 4 anos (mesmo ainda sendo fraco)? Decidi, então reescrevê-lo e publicar aqui, trecho a trecho, as partes originais e suas refações. Exercício bacana. Em itálico o antigo, em normal, a mudança.
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Linhas
Um passo curto, outro comprido, outro comprido, outro comprido, outro curto de novo. Não havia forma correta. Dependida da calçada; do piso do lugar.
Um passo curto, outro comprido. Outro comprido, outro comprido. Outro curto de novo. Não havia forma correta. Dependia da calçada; do piso do lugar.
Não pisava nas linhas do chão. Caminhava irregular para não apoiar o pé, por um piscar de olhos que fosse, sobre uma emenda de calçada. Mania comum. Boba. Coisa de criança. Tinha que fazer e fazia desde sempre e pronto. Apenas não pisava.
Não pisava nas linhas do chão. Caminhava irregular para não apoiar o pé sobre uma emenda de calçada sequer. Mania comum. Boba. Coisa de criança. Fazia desde sempre. Não pisava.
Não sabia exatamente o que aconteceria se quebrasse a regra que ele mesmo havia criado, mas muitas vezes imaginava. Uma só linha pisada e o chão ruiria sob seus pés.
Não sabia o que aconteceria se quebrasse a regra, mas imaginava. Um só descuido e o chão ruiria sob seus pés.
Cada erro poderia ser um dia a menos na vida de alguém que amasse. Morreria um urso panda – que já eram poucos, ele sabia, e os achava bastante simpáticos. Cada rejunte pisado apagaria uma das linhas das palmas de sua mão. Lembrava sempre dessa nos momentos que não conseguia pensar em nenhuma nova. Era da que mais gostava.
Cada erro poderia ser um dia a menos na vida de alguém que amasse; morreria um urso panda — que já eram poucos e bastante simpáticos. Cada rejunte pisado apagaria uma linha da palma de sua mão. Lembrava dessa sempre. Era a que mais gostava.
Quando perdia o foco da regra e encostava em uma linha, por pensar em outra coisa, como olhar para os lados para atravessar a rua ou encher a boca d’água com a carrocinha de picolé, checava rapidamente as mãos para ver qual a linha havia desaparecido. Muitas vezes não sabia certo o lugar de onde alguma teria sumido, mas imaginava. Em outras, tinha certeza: “havia uma linha bem aqui, eu sei”.
Quando perdia a concentração e encostava em uma linha, checava rapidamente qual havia desaparecido de suas mãos. Às vezes não sabia certo de onde teria sumido, mas imaginava. Em outras, tinha certeza: “havia uma linha bem aqui, eu sei”.
Se algo desse errado na vida, se alguma coisa que esperasse muito não acontecesse, lembrava da calçada exata onde tinha cometido o erro e da linha em sua mão que havia apagado. Chegou a pensar em consultar com freqüência uma profissional de quiromancia, para saber melhor a que se referiam as linhas que haviam sumido. Mas não fez. Não acreditava nessas coisas.
Se algo desse errado na vida ou deixasse de acontecer, lembrava da calçada exata onde tinha falhado e da linha da mão que havia apagado. Cogitou consultar uma profissional de quiromancia, para saber a que se referiam as linhas desaparecidas. Mas não o fez. Não acreditava nessas coisas.
Preferiu tirar cópias de suas palmas na copiadora do escritório. Registrava uma imagem de cada uma por dia e pendurava na parede do quarto. Assim poderia aferir visualmente o resultado de suas falhas, de suas distrações, e a quantidade de acontecimentos que ainda estavam por vir.
Tirou cópias das mãos no xerox do escritório. Registrava todo dia e pendurava no quarto. Assim, aferia visualmente a evolução de suas distrações e a quantidade de acontecimentos que ainda restariam.
Quando acabou o espaço nas paredes do quarto, teve que iniciar na sala. Planejou que o próximo cômodo seria o banheiro. As palmas estendidas nas paredes davam impressão que pessoas estavam presas atrás dos tijolos, empurrando, tentando sair.
Quando acabou o espaço nas paredes do quarto, continuou na sala. O próximo cômodo seria o banheiro. As palmas estendidas pela casa pareciam pessoas presas atrás dos tijolos, empurrando, tentando sair.
Aos poucos, foi tendo explicação para cada expectativa frustrada, cada plano desfeito, cada dia monótono. Os dias, os meses, os anos passavam e as palmas dependuradas foram ficando cada vez mais lisas como as plantas de seus pés. Parecia um papel de parede degradê; do escuro pro claro; de cima a baixo, da esquerda para a direita.
Aos poucos, tinha explicação para cada expectativa frustrada, cada plano desfeito, cada tarde monótona. Os dias, meses e anos passavam. As palmas nas paredes eram cada vez mais lisas, como as plantas dos pés. Parecia um papel de parede degradê; do escuro pro claro; de cima a baixo, da esquerda para a direita.
Sua vida também ficava cada mês mais vazia. Nos finais de semana, quando não ia ao escritório e não tirava cópias das mãos, analisava suas palmas o tempo todo e comparava-as com as imagens da sexta-feira.
Sua vida também esvaziava. Aos finais de semana não ia ao escritório. Sem novas cópias, analisava suas palmas o tempo todo comparando com as imagens da sexta-feira.
Já era fácil contar quantas linhas que restavam. Queria guardar uma para encontrar o amor da sua vida, outra para fazer um filho, outra para pedir demissão do seu emprego, outra para ter muito dinheiro – mas só o suficiente para não se preocupar mais com isso –, outra para fazer parar as guerras (ou será que para isso o correto não seria guardar, mas apagar uma linha?).
Já era fácil contar as linhas restantes. Guardaria uma para encontrar o amor da sua vida, outra para fazer um filho, uma para pedir demissão do seu emprego, outra para ter dinheiro — só o suficiente para não se preocupar mais.
Todavia restavam poucas e algumas realizações consumiriam, sem dúvida, muito mais do que uma delas. Achou melhor pensar em destinos menores, que consumissem menos linhas. Queria uma linha, então, para ter um aeromodelo, outra para tomar um café na sua esquina favorita, outra para que seus amigos estivessem lá, outra para um abraço apertado em alguém, outra para ir visitar sua mãe no Natal e outra para dar adeus.
Todavia restavam poucas e algumas realizações consumiriam, sem dúvida, várias delas. Achou melhor pensar em destinos menores, que consumissem menos linhas. Guardou uma, então, para um aeromodelo, outra para tomar café na sua esquina favorita, uma para que seus amigos estivessem lá, para um abraço apertado, para ir visitar sua mãe no Natal e outra para dar adeus.
Acordou, olhou pela janela e percebeu que a cidade estava vazia. As linhas em suas mãos já não eram suficientes para que as pessoas fossem às ruas. Saiu para ver. Os carros não andavam, as nuvens não passavam. Havia pássaros caídos, com as asas abertas, como que congelados entre uma batida de asas e outra. Alguns sinais estavam abertos, outros fechados, outros amarelos. Mas não mudavam mais de cor.
Acordou, olhou pela janela e percebeu a cidade vazia. As linhas em suas mãos já não eram suficientes para que as pessoas fossem às ruas. Saiu para ver. Os carros não andavam, as nuvens não passavam. Havia pássaros caídos, como que congelados entre as batidas de asas. Alguns sinais estavam abertos, outros fechados ou amarelos. Mas não mudavam mais.
As vitrines exibiam televisões fora do ar. Os luminosos não piscavam, os ponteiros dos relógios não se mexiam e as árvores não dançavam com o vento. Ele nem mesmo soprava. Voltou para casa, tomando cuidado excepcional – com uma atenção que jamais havia tido – para não pisar em nenhuma outra linha. Dessa vez era fácil. Não havia semáforos para cuidar, sorvetes para salivar. Chegou em casa e não pisou no marco da porta, atravessou a cozinha na ponta dos pés, por entre as lajotas pequenas. Levou meia hora para cruzar o corredor, porque era de parquê. Deitou de lado na cama e nem se cobriu com o cobertor listrado, por precaução. Colocou o rosto próximo aos joelhos e fechou as mãos com toda a força. Quantas linhas ainda restavam? Talvez só uma. Preferiu não olhar.
Vitrines exibiam televisões fora do ar. Luminosos não piscavam. Ponteiros de relógio não se mexiam. Árvores não dançavam com o vento. Ele nem mesmo soprava. Voltou para casa, tomando cuidado excepcional para não pisar em linha alguma. Pulou o marco da porta, atravessou a cozinha na ponta dos pés, por entre as lajotas pequenas. Levou meia hora para cruzar o corredor de parquê. Deitou de lado e nem se cobriu com o cobertor listrado, por precaução. Colocou o rosto próximo aos joelhos e fechou as mãos com força. Quantas linhas restavam? Talvez só uma. Preferiu não olhar.