Do alto dos 96 anos, Seu Amâncio vê o passado com olhos de quem não se arrepende de nada. Porém, às vezes, imagina se as coisas não poderiam ter sido diferentes; se um capricho do destino não teria mudado tudo de lugar e feito seu caminho quebrar para o lado oposto em alguma esquina. Seu Amâncio só cogita.
A família está reunida para o Natal e o velho quieto, em sua poltrona, vendo netos e bisnetos, pensativo sobre as questões de sempre. Hoje, é o Marcelo, de 16 anos, que lhe chama atenção. Está acompanhado da primeira namorada. Ela nunca veio. Novidade para toda a família. Até que o filho de Seu Amâncio, pai de Marcelo, solta:
— Coisa boa, né, pai? Primeira namorada…
Seu Amâncio só balança a cabeça concordando.
— Nessa idade, a gente sempre acha que encontrou o amor da vida. Depois, essa paixão toda passa.
E o velho ri com o canto da boca e faz um “sim”.
— Pai. Quem foi sua primeira namorada?
Seu Amâncio, pensa, pensa, respira fundo como quem diz “tá bem, então lá vai toda a história”, mas apenas fala:
— A Elza?
Ao escutar sua voz, todos calam para ouvi-lo. É um momento especial. Pensativo, lembra que diziam não ser boa moça. Mas ele não acreditara. Certo dia, deu uma incerta e foi a sua casa, sem avisar. Encontrou-a com outro no portão. Partiu-lhe o coração. Foi falar com seu pai e comunicou: “a partir de agora, nosso compromisso está desfeito”. Toda a família aguardando. Seu Amâncio parece inquieto, mas não deixa escapar uma palavra. Quando parecem desistir de esperar, o velho enche o peito e solta:
— Será que a Elza já casou?