Plano infalível para assaltar a XXXXX

(o nome da loja foi suprimido para evitar novas ações extrajudiciais ou judiciais)

Segunda-feira de Carnaval é um bom dia para fazer compras no centro da cidade. Tudo vazio, muitas lojas fechadas. Fui acompanhar minha esposa que precisava de sutiãs para lactantes. Ela queria ir na Loja XXXXXX, aquela que tem coisas de mulher pra mulher.

Chegamos e o alarme estava tocando incessantemente. Achei que era apenas um disparo acidental do sistema antifurto das portas, mas não. Era o geral, contra invasão. Fomos entrando e o som cada vez mais alto; ensurdecedor. Engraçado é que as pessoas pareciam não ouvir a sirene. Funcionários trabalhavam, clientes compravam e tudo mais na normalidade, exceto pela trilha sonora do 190. Ficamos 20 minutos. Quase surtamos, mas ninguém se abalava nem explicava nada. Também não havia sinal de uma equipe preocupada em resolver o problema.

Logo, comecei a fazer piadinhas para quem passava: “Boa esta rádio interna, não?”; “É uma nova técnica de persuasão de vendas? Deve atingir o ponto C (de consumo) do cérebro da gente”. Quando nos dirigíamos ao extremo oposto da loja, outra fonte emanava o som da sirene com algum delay. Já estava pirando, mas com bom-humor: “que legal, agora em estéreo!”; “E se a gente roubasse alguma coisa e saísse pela porta?”. Foi quando bolei um plano perfeito com o qual qualquer quadrilha semiorganizada poderia se dar bem.

São necessários uns 20 ajudantes vestidos de preto e com o nome da loja impresso em branco na camiseta. Alguns crachás podem ser úteis. A data perfeita para a ação é algum feriado facultativo em que saiba de antemão que a loja não abrirá. Às 8h30 da manhã arromba-se a porta do jeito que for. Claro que quanto mais discreto, melhor. Amarra-se, amordaça-se e pega-se a chave do vigia. Com a ajuda de 10 dos falsos funcionários uniformizados, simula-se a abertura e início das atividade normais da loja. Eles assumem posições de vendedores, caixa, empacotadores. Um deles encarrega-se de despistar os policiais e pessoal da central de alarme, que talvez apareçam, com alguma desculpa esfarrapada do tipo “O moleque jogou uma pedra no vidro…” ou “O gerente substituto esqueceu da senha…” e finalizando com “… e o alarme emperrou, mas nossa equipe técnica já está trabalhando para solucionar”. Para finalizar o texto, gritando com as mãos nos ouvidos: “Já é a segunda vez que isso acontece. Se prejudicar minha audição vou processar a empresa”. Outros três ajudantes saem à procura de cofres e valores em geral, enquanto seis carregam mercadoria do estoque para um caminhão com o baú lonado com a logomarca da loja. Meia hora depois, discretamente, todos os comparsas embarcam no veículo que arranca e trafega lento e despercebido. Entra em um galpão por uma porta e sai por outra já sem a lona personalizada, exibindo o nome de uma transportadora fictícia: “Mário Mudanças — ‘Fasso’ Frete”. Assim mesmo, com dois esses.

Isso tudo poderia estar acontecendo nesta segunda de manhã em que estive lá. E para quem não conhece o meu senso de humor, alerto: não adianta me acusar de dar ideia para bandido. Tudo que está publicado aqui pode ser lido por qualquer um. Ou seja, também serve de alerta para que as centrais de alarme e policiais não caiam em um golpe pobre de imaginação como este. Mas fica a dica para quem ler primeiro. Atenção, foi dada a largada. Já!

Obs.: ainda em tempo, é claro que minha mulher achou o sutiã que procurava. Sugeri que ela comprasse um com estampa de bichinhos, mas para amamentação só existe daqueles beges, cor que é ideal para quem está de “quarentena” sexual após uma cesariana.

Mais Preto que Vermelho

Todos vestiram a camisa do seu time. Os de bicicleta, os do ponto de ônibus, os motoboys, os frentistas e os que atravessavam a rua. Os vendedores de jornal e até os descamisados a vestiam. A moça que abria a loja estava com a vermelha. O dono do escritório, com a branca. Um ia pro trabalho com a bandeira nas costas. Eles não estavam comemorando uma vitória. Não celebravam uma contratação, nem a chegada de um novo patrocinador. Não era aniversário do clube e nem tinham subido de divisão. Não havia sido lançado um novo uniforme – cada um usava o que tinha em casa, de anos. Não comemoravam a eleição de uma nova diretoria nem achacavam a derrota de seu rival. Sua sede não estava sendo reformada.

O nome do seu time aparecera nos noticiários nacionais e internacionais, com exposição inédita. Mas eles não celebravam nada. Na verdade, não havia nada para ser comemorarado.

A Vida dos Outros

Fiquei esperando no carro enquanto minha mulher ia na farmácia.

Na parada de ônibus do outro lado da rua, um casal de surdos-mudos discutia. Nunca tinha presenciado uma briga na linguagem dos sinais. Prestei atenção, tentando captar uma palavra (ou intenção), como fazemos quando escutamos um idioma que não dominamos. Em seus gestos, ele indicou a si, passou o dedo no pulso mostrando as veias, fez “não” com a mão e apontou para ela. “Nossa. Ele disse que o sangue dele não é o mesmo dela?!” Um ônibus parou. Cobriu minha visão. Torci para que não fosse o que esperavam. Queria ver mais daquela discussão silenciosa. Não era. “Ufa!”

Com minha interpretação novela-das-oito e freud-shakespeariana de quem nunca teve contato com linguagem dos sinais, era impossível não deixar de imaginar toda a história. Os dois foram criados como irmãos, se apaixonaram, passaram a se encontrar às escondidas, no celeiro da casa na Colônia. Mas ela achava o romance proibido; que estavam cometendo pecado; que aos olhos da família era praticamente um incesto. Ele relutava. Dizia que nem tinham o mesmo sangue; que todo amor era permitido, pois pra que serviria a vida, afinal? Que, se o destino os colocou lado a lado, com tantos outros caminhos possíveis e, se tinham compartilhado esse sentimento tão intenso, não seria a igreja, a tradição familiar, os olhares dos vizinhos ou qualquer julgamento de anormalidade que haveria de os separar.

Segui no pensamento. Estava disposto a enfrentar a todos, mas a fugir também, se preciso fosse. Ela olhou pra ele. Ele olhou pra ela. Ficaram assim, parados, por minutos, sem pronunciar (ou sinalizar) nenhuma palavra (ou significado). Surdos-mudos são bem mais visuais.

Toda a rua era testemunha daquela discussão silenciosa. Outro ônibus parou. Ainda não era o deles. Ela fez um sinal juntando todos os dedos virados pra cima, como quem indica quantidade. Era isso. Continuo a imaginar. Ela disse que fugir era caro. Não tinham dinheiro. Como iriam se sustentar? Ainda eram jovens e inexperientes, principalmente tendo que garantir o sustento da criança que estava por vir. “Claro! Um bebê!” Por isso estavam em frente à farmácia. Ela acabara de fazer um exame de gravidez. Chegou outro ônibus e os escondeu. Quando saiu, não estavam mais ali. Não consegui nem ver qual era a linha.

Minha esposa voltou, reclamando que demorara para ser atendida. Nem percebi. Liguei o carro e fomos embora, deixando outras seis pessoas aguardando o próximo ônibus. Para onde estariam indo?

Olimpiadas (“Olim-piadas”, para quem achou que errei o acento)

Tinha um desenho animado do Pateta que, na tradução para o Brasil, foi entitulado “Olimpiadas do Pateta” (será que estou confundindo com alguma edição especial da Turma da Mônica? Bom, todo mundo usa esse trocadilho). O fato é que o desenho da Disney era muito massa e não passava a toda hora como os outros. Aliás, nem sei se, nas poucas vezes que eu vi, era nas tradicionais sessões matutinas na TV, como de costume.

Alguns acontecimentos das Olimpíadas de Pequim me lembraram do Pateta:

George Bush, assistindo Michael Phelps no Cubo d’Água da arquibancada, ergue a bandeira norte-americana em frente a seu rosto, acha que ela está ao contrário. Inverte, agora sim para o lado errado. Sua acompanhante (esposa?) tenta corrigir, mas ele desconsidera a ajuda como quem diz “sai pra lá, chata”;
– a Geórgia (país que fazia parte da União Soviética e que tá em “guerra” com a Rússia) está repatriando atletas do mundo inteiro para defender suas cores nos Jogos. No vôlei de praia, a dupla georgio-brasileira perdeu para a brasilo-brasileira; na entrevista para a TV, Geor disse que estavam levando um pouco de alegria a seu povo que passa por um momento muito difícil. Como assim? Qual é o povo de alguém que vende sua cidadania para participar de uma Olimpíada?
– ah, não! Não bastasse no Carnaval… Leci Brandão é comentarista do futebol feminino na Globo. Assista um jogo e entenda;
Galvão Bueno falando merda sobre a China na fantástica festa de abertura.

ex-Polegar

O ex-Polegar, Rafael, depois de cheirar todas, fumar tudo e até comer pilha, resolveu agora entrar pro ramo do seqüestro. Só mesmo se mantendo nos noticiários, da forma que for, para que todos lembrem do ex-Polegar. Já do ex-indicador, do ex-médio, do ex-anelar e do ex-mínimo ninguém recorda. Bem que a Eliana tentou, mas tirando fora o polegar, o grupo dos dedinhos caiu no esquecimento.

Reza

Rezou porque estava abalado. Nunca se sabe quando algo vai bater forte. Rezou porque o inexplicável, o inacreditável e o improvável acontecem a toda hora, mas, quando perto, é mais fácil de entender que poderia ter sido com a gente. Isso assusta. Rezou para que tenha sido tranquilo, belo e sublime. Não acreditava que não fosse. Toda a dor, por maior que venha, deve reverter nessa hora.

Quem vai não sofre mais do que quem fica. Rezou por isso também.

Se rezou para pedir por algo que já aconteceu não ter sido uma experiência ruim, é prova que o tempo nada mais é do que um detalhe, uma dimensão, um aspecto da vida. Se rezou, por que não crer também que o passado é só uma peça que ainda pode ser movida? Tudo é possível para quem reza. Rezou do jeito dele; que sabia.

Rezou por quem ficou. Por quem precisa de serenidade e superação. Rezou não sabe bem para quem. Para o deus que estivesse de plantão na hora. Para o deus dentro dele.

Rezou porque não havia mais nada que pudesse fazer.

Gauchos (“gáuchos” para os menos avisados)

Inspirado pelo discurso de Vitor Ramil sobre a estética do frio, escrevi uma defesa de um trabalho para uns clientes uruguaios, que não vemm ao caso agora comentar. Achei bonitinho (e outras pessoas também), então resolvi compartilhar. É simples e curto, porém verdadeiro.

Para o povo do Rio Grande do Sul, principalmente na região sul do Estado, os países do Prata são o quintal da nossa casa. Nossas tradições culturais e hábitos nos unem. Nos identificamos mais com a milonga do que com o samba, mais com o frio do que com o calor, mais com o arroz do que com o feijão. Nosso vocabulário é farto em palavras espanholas que poucos no resto do Brasil compreendem. Falar do Uruguay é como falar de um irmão que foi estudar no exterior, de quem temos saudades. São coisas que não se explica. São coisas da alma. Já no futebol é outra história.

Não somos mais uruguaios do que brasileiros, mas, certamente, somos mais gaúchos do que brasileiros; e tão “gauchos” quanto vocês.”

Visão

As árvores passam rápido e perto. Bastante, até. O canteiro central fica bem próximo à avenida. Não estou muito acima da velocidade permitida. Só um pouco. Como sempre. É trânsito de meio-dia. Não é uma grande cidade, mas é trânsito de meio-dia. Daqui a uns trezentos metros tem uma escola. As crianças vão para casa pela calçada. Atravessam a rua. Correm. Oitenta quilômetros por hora não parecem mais tão seguros assim. Deve ser por isso que as placas limitam em sessenta. Imagino uma criança surgindo de trás de uma árvore, distraída, fugindo de brincadeira. Eu não tenho tempo de frear. Algo bate no meu capô. Tudo rápido. Imagino. Visualizo. A criança. Fico em choque. A criança. Desespero. Lembro da minha filha. Poderia ser ela. Mas não é ninguém. Só minha cabeça. Seria horrível. Acabaria com a vida dela, da sua família, com minha vida. Viveria com isso pra sempre. Um pesadelo eterno. A culpa, o remorso. Vergonha. Desculpas inúteis. Engulo seco. Fico ofegante. Poderia acontecer. Poderia ter acontecido. Costuma acontecer. Todo dia. Em todo lugar. Poderia estar acontecendo. É só uma questão de azar, de acaso, de circunstância. Num segundo, tudo bem. No outro, o inferno. Num instante a alegria da criança. No outro, a dor. Sofro com a possibilidade. Parece que aconteceu. Que horror! Reduzo. Passo no quebra-molas. Foi tão forte. Tão real. Nunca senti isso. Seria uma visão? Será que as visões são assim?

Quero uma pedra no rim

Quero uma pedra no rim. Quero sair do trabalho, no final do dia, sentindo um desconforto abdominal. Quero sentir a sensação aumentar enquanto dirijo pra casa. Quero chegar com uma dor muito forte. Quero pedir para minha mulher “coloca a chaleira no fogo e me traz uma bolsa de água quente. Tô com pedra no rim!”.

Quero vestir o pijama com esforço e velocidade desajeitada, para me deitar o quanto antes possível. Quero sentir o calor reconfortante da minha cama, mesmo que não consiga permanecer quieto sob o edredom. Quero sentir o alívio de uma dor superinsuportável passar para somente uma insuportável — “ai, que bom…”. Quero um beijo carinhoso.

Quero sentir o queimar se movimentar lentamente do rim à bexiga. Quero andar pela casa vigorosamente, para fazer a pedra descer, acompanhado de minha filha de três anos que imita soldado atrás de mim, dá risada e, agora, menos preocupada, me faz tirar um sorriso não sei de onde.

Quero tomar muita água, encher o copo muitas vezes, ir ao banheiro outras tantas — “sai, desgraçada!”. Quero urinar sangue. Quero um reike amoroso e um cafuné inocente. Quero ficar bom, mas só duas horas de dor até que não é tanto. Ao lado de minha filha que dorme, quero conversar com minha mulher sobre a vida, fazer planos para o futuro me sentindo renascido. Quero acordar no dia seguinte com uma voz de criança perguntando “melhorou, papai?”. Quero uma pedra no rim todo dia 27, pelo menos.

Tive, ontem, minha quarta cólica renal. A segunda do lado direito. E foi maravilhoso.