Rasta Cânhamo Card

Atenção, passageiros do voo Varig-Gol 1993 com destino a Brasília, embarque imediato pelo portão 8. Terão prioridade gestantes, idosos, passageiros acompanhados de crianças de colo, portadores de deficiência física e dos cartões Varig-Gol Platina e Gold, bem como dos cartões Visa Plus, American Express, Panvel Aposentados, Esporte Clube Internacional, Kids Fest Traquinagem, Lojas Renner, Golden Cross, Saúde Bradesco, Bar do Tuca, Surdinas Iguaçu e Tia Bete Excursões. Ou seja, o magrão ali no lado com a camiseta do Bob Marley entra por último.

Ingenuidade

Tenho saudade de minha ingenuidade. Do tempo em que eu achava que quanto mais recheio, melhor o pastel; que dez anos depois eu e todos meus amigos iríamos assistir a Copa na França (havíamos prometido); que os professores sabiam de tudo; que a polícia cuidaria de nossa segurança; que faltava muito tempo para eu virar adulto — nunca chegaria; que quanto mais “baixinho”, mais legal o carro; que o músico que tocava mais notas por segundo era o melhor; que música boa tinha que ter muito grave; que café só com muito açúcar; que filme tinha que ser explicado no final.

Tenho saudade do tempo em que eu queria ser bombeiro.

O Barulho da Noite

A noite está barulhenta. Não são os carros, nem os vizinhos, nem a geladeira. Eu moro, digamos, “para fora”. Não há trânsito. É tranquilo. Costumava ouvir corujas, grilos, pasarinhos insones. Mas na última semana há um ronco baixo e constante. Parece uma betoneira distante, mas quem viraria noites trabalhando em construção? Parece um vento grosso, mas as árvores não se mexem. Parece um avião que nunca pousa. Um trovão permanente no horizonte limpo.

Pode ser apenas a minha cabeça.

Teresa e Daurinha

Teresa é empregada doméstica. Trabalha na casa da Daurinha há cinco anos. Daurinha é uma jovem senhora, professora aposentada. Ambas mantêm excelente relação profissional calcada na cordialidade e no respeito.

A legislação trabalhista para as domésticas não é lá muito generosa com a categoria em termos de carga horária diária, fins de semana e feriados. Mas Daurinha é moderna. Antes da lei vem o bom-senso.

Teresa é ótima empregada; Daurinha é ótima patroa. Uma assina carteira; outra cumpre os horários. Paga sempre em dia; cozinha sublime. Não exije trabalho aos sábados; nunca faltou. Ou seja, não têm o que reclamar uma da outra; e vice-versa. Mesmo em suas pequenas diferenças, se entendem.

Quando a questão é sobre esses feriados não-feriados, como vésperas de Natal e Ano-novo, Daurinha sempre fica chateada em pedir para funcionária vir e Teresa constrangida em perguntar. Na eminência da segunda-feira de Carnaval é a mesma coisa, apesar de saber que nem terça é feriado oficial. Daurinha fica treinando como falar:

— Teresa, segunda podes vir trabalhar? — Não, muito pidão. Parecerá que não se trabalha segunda.

— Teresa, tuas amigas vão trabalhar segunda? — Também não. Onde se viu basear as decisões no comportamento das outras patroas? Depois abrirei precedentes e já viu…

— Teresa, não esquece que segunda se trabalha. — Muito autoritário. Não é do meu feitio. Parecerá que acho que ela não sabe. Que tal algo que misture ordem e pergunta para quebrar o rigor?

— Teresa, trabalha segunda, né? — Mas só confabula.

Teresa fica na passiva. Se Daurinha não falar nada, decidirá se vai ou não. Mas se a patroa disser algo, não terá opção.

Sexta, na hora de ir embora, já com a bolsa em punho, vibrando que nada foi dito ainda, Teresa despede-se mas mete os pés pelas mãos.

— Tchau, Dona Daurinha. Até segunda. — Putz, falei errado. “Segunda”, não!

— Até segunda, Teresa! — Ufa!

Viagem no Tempo

Nunca estudei a teoria de Einstein sobre espaço-tempo, mas, como um perfeito idiota preguiçoso, penso a respeito.

Acompanhe. Se uma imagem é a reflexão da luz em um objeto; se a luz leva um tempo X para percorrer uma distância; se quanto mais longe estivermos de algo mais tempo leva para o vermos; se com um telescópio muito foda podemos ver galáxias e planetas como eram em algum tempo passado; se pudéssemos viajar acima da velocidade da luz, poderíamos ver a nós mesmos no passado. Bom, até aí, tudo bem. É possível ver o que passou, em teoria. Mas e para testemunhar o futuro? Se quanto mais rápido nos movemos — acima da velocidade da luz — mais retroativa é a visão de nosso ponto de partida, significa que quanto mais devagar ou parados estivermos poderíamos ver o futuro? Eu sabia que a lerdice, a falta de ânimo e movimentação poderiam levar a algum lugar! Basta esperar que o futuro chega.

Ambíguo

Venho escrevendo isto há algum tempo.

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É o que me mata, me mantém vivo
É o meu crime e meu castigo
É minha dor. É meu alívio
É meu lado ambíguo

É meu veneno e meu antídoto
É meu sufoco e meu respiro
É meu relento. É meu abrigo
É o que eu suplico

É meu vento e meu vestido
Meu estilingue e meu vidro
É o meu filme. É o meu livro
É só meu prejuízo

É meu cheio e meu vazio
Minha prece e meu sino
É meu brinco. É meu ouvido
É meu sorriso contido

É congelar ao sol
Pescar o anzol
É tempo perdido
É reler o relido

É autodestruição
Pular do avião
É furar o balão
Sou eu em cacos de vidro

O Flyer mais Criativo do Mundo

Dobrei e coloquei no bolso.

É comum, na entrada do supermercado, entidades assistenciais entregarem folhetos pedindo doações de alimentos. Sábado, recebi mais um, amarelo. Dei alguns passos e levei aos olhos para ler. Estava em branco, dos dois lados. “Uau!” O que aquilo queria dizer? Comecei a viajar.

Que eu devia fazer um exame de consciência e agir da melhor forma possível com relação ao mundo, minha cidadania etc.? Que legal. Uma ação de inspiração artística com função reflexiva. Que nível de eficiência poderia ter?

Que se tratava de uma instituição de deficientes visuais, ludibriada pelo pessoal da gráfica ao receber seus impressos em branco? Mas quem teria a coragem de enganar um ceguinho?

Que, como a ação em supermercados é sempre para arrecadação de alimentos, não é necessário mais imprimir o apelo, basta repetir o gesto? Futuramente, nem folhetos mais seriam necessários, apenas a presença dos voluntários.

Na saída, reparei no calhamaço de onde eram distribuídos. Não estavam em branco, não. Tratava-se de material do Banco de Alimentos, com a arte tradicional. O que recebi, em branco, estava perdido entre os demais.

Poxa! Que decepção.

Maldita Glória Kalil

Ela era desligada, ele chato. Estavam namorando há cinco dias. Foram almoçar juntos pela primeira vez. Serviram-se no buffet, pesaram os pratos e sentaram. Ele reparou em como ela comia. Não resistiu.

— Ã…
— Quê?
— É que…
— Fala.
— Ah, nada. Nada. Deixa assim.
— Agora fala, né?
— Não… Era uma besteira. Esquece.
— Sabe que eu sou curiosa?
— Sei. Sei, tô sabendo. (risos)
— Então? Não vai falar?
— É que eu pensei, mas achei melhor não falar. Porque, realmente, é algo, assim, sem importância.
— Mas eu vou morrer se você não contar. Tá sabendo?
— Eu sou muito de falar sem pensar… Dessa vez eu só pensei. Se fosse algo importante eu falava.
— Sei…
— Às vezes, a gente fala e a outra pessoa entende aquilo como algo ruim. Eu não quero que você pense a coisa errada.
— Olha, vou ser sincera também.
— Por favor.
— Não me importa o que você fala. Importa o que você pensa.
— É?
— Claro. Se eu estou com alguém é pelo o que ele é, e não somente pelo que ele parece ser.
— Faz sentido.
— Então, se você pensou algo que se eu soubesse me faria brigar com você, é porque o que você pensa não é o que eu gostaria que pensasse; não é o que eu espero de um namorado.
— Acho que você está complicando uma coisa simples.
— Melhor complicar agora do que depois, não acha?
— É?
— É.
— Quer que eu complique também?
— Quero.
— Então, agora, vou falar.
— Pode falar.
— É que você usa a faca para colocar a comida no garfo.
— E daí?
— E é todo tempo!
— Tá. E daí?
— Daí que faca é pra cortar, não para colocar o máximo de comida possível no garfo!
— A Glória Kalil diz que pode.
— Ah… Duvido.
— Diz, sim. Eu vi no Fantástico.
— Ah, viu, é?
— Vi.
— Então, tá bom. Mas eu não gosto.
— É porque você é cheio de manias!
— Muito prazer. Este sou eu.
— Muito prazer. Esta sou eu. E até mais ver.
— Isso é um tchau?
— Não. Um adeus.
— Quer saber mais?
— Hf?
— Você come feio pra caralho!
— Grosso!

Troca-troca

Escrevi para meus padrinhos. Foi baseado na realidade de suas personalidades, mas, claro, a história é ficção.

* * * * * * * * * * *

Ele não vai ao médico. Ela não faz lentilha. O impasse tem quase 10 anos.

Quando querem cutucar um ao outro, ela destrincha um discurso sobre a saúde dele, ele reclama que ela não prepara o prato que tanto gosta. Ela é cozinheira de mão cheia. Sempre uma receita nova. Não tem medo de ousar. Mesmo assim, ele não deixa passar: “e a minha lentilha?”. Aproveita o dom gastronômico da mulher e se farta. Os banquetes agradam-lhe à alma e ao paladar. Sedentário, a cintura e a pressão aumentam. “Luiz Antônio, não tá na hora de fazer um check-up?” Pronto! É motivo para fechar a cara e não se falarem por dias.

Certa terça-feira, ela teve uma ideia.

— Luiz Antônio.
Zzzzzzz
— Luiz Antônio!
— Ã, o quê? O quê?
— Tava pensando…
Cof, cof, rrrrrr… Ã… Fala.
— Quem sabe a gente faz um… troca-troca?
— Quê?
— Q-u-e-m  s-a-b-e  a  g-e-n-t-e  f-…
— Eu entendi essa parte. Mas que história é essa de troca-troca?
— Ué? Eu só tava pensando…
— Nunca fui homem disso, Maria Clara.
— Não seja por isso. Tu nunca foste homem nem pra ir ao médico…
— Ah, tá. Vai começar de novo?
— Tá, tá, tá. Calma. Mas eu tô falando sério sobre o troca-troca.
— Que isso, Maria Clara? Eu aqui trabalhando e tu me vens com sacanagem?
— Ai… Quase 40 anos de casamento e parece que tu não me conheces.
— Então, me explica. Me explica que eu já tô ficando nervoso com esse troço.
— “Troca-troca” assim: primeiro tu vais ao médico fazer um check-up…
— Eu falei para não falar disso.
— Então, não falo! Não falo mais nada! Cansei!

E ficaram uma semana sem se falar de novo. Só que ele não conseguia parar de pensar na conversa da esposa. Sempre foi um homem fiel, dedicado à família. Agora a patroa vinha com essas modernices. “Só pode ser a menopausa ou coisa parecida.” Por outro lado, já estava com mais de 60. Muitos de seus amigos divorciados contavam as vantagens em serem solteiros e voltarem à puberdade. Matutou alguns dias e decidiu aceitar a proposta. Afinal, teria a oportunidade de aproveitar os prazeres da vida na companhia de sua parceira eterna. Muito melhor do que qualquer outra opção que só os fizessem sofrer. Estava decidido. Iria encarar o tal troca-troca. Chegou em casa sexta à noite e a chamou:

— Maria Clara!
“Ué? Resolveu falar”, ela pensou.
— O quê, Luiz Antônio?
— Sabe aquela história?
— Que história?
— Do… Do…
— Desembucha, Luiz Antônio.
— Do… Do troca-troca.
— Ah. Sei.
— Pois é, eu pensei melhor e acho que pode ser legal.
— É mesmo?!
— É.
— Puxa, não sabes como eu fico feliz em ouvir isso!
— Quando podemos fazer?
— Quando tu quiseres. Só tenho que ligar e marcar.
— Eu já convidei o Paulão do shopping e a esposa dele.
— Quem?
— É… Ele ficou meio assim, mas acabou concordando.
— Ã… Tá.
— Gente finíssima. O Paulão é boa-pinta… Ela, mais ou menos. Mas aí, azar o meu, né? Ele convidou até mais um casal amigo deles. Não sei direito quem são, mas levo fé no Paulão.
— Quê?!
— Tá tudo combinado!
— Mas Luiz Antônio… Vais trazer quatro pessoas pra comer minha lentilha?
— Que lentilha?

Diga que Não Estou

Diga que não estou; que saí; que fui viajar; que não posso atender; que ligo depois. Diga que estou em reunião; que estou sem voz; adoentado; amolado; resfriado; que fui ao banheiro; que ainda não cheguei. Fui almoçar, volto logo. “O ramal está ocupado. Quer deixar recado?” Fale que não estou atendendo; que estou em outra ligação ou não me achou em minha mesa. Fale que estou dormindo, com dor de cabeça. Cheguei tarde ontem. Invente qualquer coisa, como que fui comprar cigarros e não voltei. Diga que ninguém me viu hoje ou tem notícias. Ninguém sabe de mim. Que fugi; desapareci. Não deixei bilhete nem avisei a ninguém. “Ele não levou o celular.” Mande ver se estou na esquina. Diga que morri.