Desenrolando

Desenrolou o tempo. Estendeu-o sobre uma tábua de passar roupa. Desamassou com ferro os enrugados. Contornou as casas com o ponta quente. Fez o mesmo com os botões. Borrifou água onde estava mais conturbado e alisou várias vezes. Virou do avesso e repetiu o processo. Dependurou no cabide e guardou no armário. E lá ficou o tempo, perfumado, à mercê do mofo outra vez, pronto para a próxima necessidade. Torceu para que fosse logo.

Vigilância Sanitária Veta Show na Fenadoce 2012

Com a intenção de garantir datas nas agendas de grandes artistas nacionais, a organização da Fenadoce 2012, com antecipação inédita, iniciou a divulgar a lista de espetáculos musicais já confirmados para o evento. Um dia após o primeiro nome ser destaque nos veículos jornalísticos locais, a Vigilância Sanitária da Secretaria de Saúde emitiu parecer desfavorável à atração. Para o inspetor Arantes, que assina o documento, Não se pode permitir que a cidade seja infectada com este tipo de praga, ainda mais quando o assunto é o doce. Precisamos ser responsáveis com os turistas e com o próprio povo pelotense. É uma questão de saúde pública, finalizou Arantes. A presidência da Fenadoce recebeu a notícia como um balde de água fria. Segundo os organizadores, a atração é peça-chave para as comemorações, que conjugam os 20 anos da Feira com os 200 anos de Pelotas, mas garantiram que irão procurar as vias legais para que o show em questão se realize. A produção do cantor Paulinho Moska foi procurada, mas não quis se pronunciar a respeito.

Os Chatos Salvarão o Mundo

O mundo precisa de mais chatos. Não estou falando dos monótonos. Me refiro àqueles que enchem o saco.

O chato tem muito mais chances de ser incorruptível, obstinado, persistente. Ele não desiste nunca; não desvirtua. Você conhece algum chato inseguro? É preciso confiança e otimismo para ser chato. O chato é caxias, metódico, segue regras e gosta de criá-las.

Todo chato tem ideologia. Frente a quem não tem, é uma grande vantagem. O chato tem potencial incrível para ser um grande líder.

Só há três problemas: ninguém o suporta, poucos o levam a sério e, se fosse de fato brilhante, não seria tão chato; teria melhor estratégia e autocrítica. Autocrítica falha pode ser o começo da hipocrisia. Mas, se não fosse tão chato, talvez perdesse as demais qualidades.

Só o chato pode salvar o mundo, mas o mundo não quer ser salvo por ele. O mundo prefere o Super-homem.

O Seu Celular tem Telefone?

Imagem meramente ilustrativa, fake, roubada do site de alguém-que-não-sei-quem (obrigado).

Celulares fazem de tudo. Tem uns que, parece, até podem ser usados para telefonar.
Antes do advento dos smartphones, a Nokia lançou um modelo muito simples, que tinha uma pequena lanterna como diferencial. Raso de barato. Ele apenas telefonava e iluminava. Sensacional! A maioria das pessoas não usa nem 10% das funções de seus aparelhos. Mas uma lanterna, tenho certeza que despertou, senão apenas curiosidade, interesse de algum tipo de consumidor.

Comecei a imaginar dezenas de modelos de celulares, cada um com um feature específico para um tipo de pessoa:

– com espelho, para mulheres maquiáveis;
– com saca-rolhas, para sommeliers;
– com trena eletrônica e nível, para arquitetos e mestres-de-obras;
– com bússola analógica, para exploradores e desorientados;
– com multitester, para eletricistas;
– com medidor de pressão, para profissionais da saúde;
– com medidor de taxa de glicose, para diabéticos;
– com canivete suíço, para… para… suíços;
– com balança portátil de malas, para turistas consumistas;
– com colorímetro, para designers e pintores de parede;
– com contador manual, para pecuaristas e guias turísticos na Disneylândia;
– com decibelímetro, para vizinhos chatos.

Alô, é da Nokia? Tenho uma ideia pra vocês desbancarem o iPhone. Quer comprar?” : )

O Novato

Esquecera de algo muito importante. A pouco começaria o show. Tinha que resolver urgente. Abandonou o lanche e saiu em disparada. Era responsável pelos efeitos sonoros e vídeos no telão. Tudo era computadorizado; entrariam automáticos. Mas uma coisa não lembrara de fazer. Lapso, falha, bobagem, porém, seria vergonhoso. Precisava chegar logo ao backstage e corrigir! Cerca de 300 metros até a lona de espetáculos, só que a feira estava lotada – era fim de semana. Se não conseguisse, daria tudo errado. Nunca o perdoariam. Tropeçou no carpete do corredor principal. Quase caiu. A moça bonita do estande de tapetes riu. Não ruborizou por pura falta de tempo. Seguiu no trote.

Todo o show era perfeito. Toda noite, irrepreensível. Os músicos, dos mais talentosos. Os bailarinos, elogiadíssimos. O melhor iluminador estava na trupe. O engenheiro de som era de renome. Já tinha feito mesa até para o Jethro Tull, na década de 70. Um novato falharia? Alguém que ganhara chance na equipe por indicação de um amigo em comum com artista? Muitos apostaram silenciosamente que sim.

Esquivou-se do casal, pulou sobre a lixeira, esbarrou na senhora de bengala – “perdão”. Correu tudo que pode. De longe viu que as luzes apagaram. Ouviu o público gritar excitado. Começou. “Corre!”. Driblou os fotógrafos. Mostrou a credencial ao segurança. Avistou o computador. Esticou o braço em direção ao mouse como o Homem Elástico. Mas antes de alcançá-lo, escutou das caixas de som, rasgando-lhe o coração e os tímpanos da plateia: “as definições de vírus foram atualizadas”.

Amaldiçoou todo e qualquer freeware e pôs-se a chorar.

O Que, De Fato, É “Sensação Térmica”?

Não entendo muito bem essa história de sensação térmica.

Outro dia fazia 3ºC na minha cidade, mas a sensação térmica era de -1ºC. Em outro município, de -5ºC. Pelo menos foi o que disse a moça da televisão.

Hoje na Europa, a sensação chegou a 56ºC. Cacilda!

Não sei se essas informações são aferidas por um psicólogo ou meteorologista, mas como não tinha nenhum desses por perto, resolvi perguntar para meu pai, que é formado em Agronomia. É o que chegava mais próximo.

Sem titubear, como todo bom engenheiro agrônomo (antigamente era a profissão tida como mais polivalente — hoje perde pro Direito e Administração de Empresas), expeliu:

— É assim: os caras pegam um veterinário, um filósofo e um arquiteto paulista (este último pode ser substituído por um cabelereiro ou, melhor ainda, por um designer). Levam os três para um descampado ventoso e mandam tirar a roupa, inclusive o cachecol do arquiteto. Depois de 15 minutos, uma equipe recolhe os indivíduos e pergunta qual a temperatura acreditam estar fazendo. Multiplicam a nota do arquiteto por 1,35, somam com as demais e dividem por 3. Pronto. Assim definem a sensação térmica no inverno.
— E no verão, pai?
— Ah, no verão vou me informar e te digo depois.

O Grande Pai Surf

A criatividade surfista é incrível.

— Em época de maré baixa, nos anos 60, os surfistas da Califórnia inventaram o skate.
— No frio do inverno, também nos anos 60, surfistas da Califórnia, deslocados geograficamente, inventaram o snurfer (snow + surf), que depois foi rebatizado de snowboard.
— Em lugares sem onda mas com vento, de novo nos anos 60 (ah, que década efervescente!), surfistas da Califórnia cravaram uma vela em uma prancha e fizeram o windsurf.
— Para os dias de pouca onda, no final da década de 70, o surfista mais esperto da Califórnia, pegou um snowboard, amarrou-se em uma lancha e criou o wakeboard.
— Na Califórnia, um surfista empinador de pipas, na década de 80, roubou uma lancha e inventou o kytesurf.
— Na Califórnia, nos anos 90, a mãe de um surfista ficou doente e não lavou as roupas do filho. Como tinha que ir a uma festa irada, o prodígio inventor foi iluminado: pegou o ferro de passar e uma camisa florida do cesto de roupas sujas, estendeu-a sobre sua prancha e criou (ou acha que criou) a tábua de passar roupas.

O Fim das Locadoras

— Olá.
— Bom dia, senhor.
— Por acaso, vocês têm “Be Kind Rewind”?
— Temos, sim.
— Que bom, vou locar.
— Quer entrar na fila de espera?
— Não, quero levar agora.
— É que todas as cópias estão locadas, senhor.
— Então vocês não têm.
— Ter, temos, senhor. Estar, é que não está.
— Tá. Então, vou entrar na fila de espera. Como faz?
— Me diga o seu nome e eu ligo para o telefone de sua ficha quando chegar.
— Mas “quando chegar” quando?
— “Quando chegar”, quando chegar.
— Tipo, se chegar segunda-feira às 2 da madrugada você vai me ligar?
— Eu não, porque eu trabalho só até às 23.
— Ok. Então o seu colega vai me ligar?
— Não. Na verdade, a locadora só trabalha até às 23h.
— (paciência)

A fila se formando. Todos acompanhando o desenrolar.

— Posso reservar para um dia específico?
— Nossas regras não preveem esse tipo de reserva, senhor.
— E você não pode anotar em um papelzinho, ou na sua agenda, que eu quero esse filme para o sábado?
— Até posso, mas não garanto que funcione, porque sai das regras.
— Precisa de tanta regra para locar um filme?
— Temos mais de 6 mil filmes, senhor. São mais de 4 mil clientes.
— 6 mil títulos e não tem o que eu quero?
— Temos 22 cópias desse título, senhor.
— Mas todas locadas…
— Sim, senhor. Saiu na Veja semana passada. Todo mundo quer locar.
— “Na Veja”. Grande merda que saiu na Veja. Eu sou fã do Gondry. Vi todos os filmes.
— Todos os clientes têm seus motivos, senhor.
— “Mimimi… Saiu na Veja…”

Instantes de embate silencioso.

— Senhor, vai querer entrar na lista de espera?
— Vou esperar aqui do lado, pra ver se alguém da fila não está devolvendo, pode ser?
— Pode. Obrigado, senhor.
— Que bom que pode.

Depois da terceira devolução.

— Esse é o “Be Kind Rewind”, não é?
— É sim, senhor. Mas é a cópia widescreen.
— Graças a Deus que é. Vou levar.
— Senhor, desculpe, mas existe outra pessoa na lista de espera já. O senhor não pode levar agora.
— Mas como? Eu estou aqui, pessoalmente. Esse cara da lista tá deitado em casa, coçando o saco, esperando você ligar pra ele.
— Não sei informar, senhor. Mas ele entrou na lista, o senhor ainda não.
— Ai, meu Deus!
— São as regras, senhor.
— E se ele não atender o telefone?
— Aí eu passo para o segundo da lista.
— “Segundo?” Quantos têm nessa lista?
— Apenas dois, senhor.
— Dois são suficientes para me irritar.

Silêncio. O atendente liga.

— Pergunta se ele não tá coçando o saco, pergunta.

Chama 2 vezes.

— Não tá atendendo, viu? Não tá atendendo!
— Mais um minuto, senhor.
— Ele saiu. Eu sei. Dia bonito. Sol. Foi pra praia.
— Tem razão, senhor.
— O quê? Foi pra praia?
— Tá um dia bonito.
— Aiiiii.
— Olha, senhor. Não atendeu.
— Ótimo.
— Vou ver se tem o celular na ficha.
— Que “celular”? Vocês ligam pra celular?
— Quando o cliente pede, sim.
— Mas vai gastar mais do que o lucro da locação.
— O custo de ligações já está embutido no preço da locação, senhor.
— Em todas? Mas vocês nunca me ligaram. Aliás, não preciso que me liguem, pois eu venho aqui pessoalmente, gasto gasolina. Quero desconto.
— Isso não é possível, senhor.

Silêncio.

— Tá desligado.
— Significa que o filme é meu?
— Não, tem o segundo na lista.
— Puta que pariu.

Fila se formando de novo.

— Acho que o senhor deu sorte, senhor.
Ahahahah. Ah, é? Por quê?
— A ficha deste cliente está bloqueada.
— Picareta. Só podia. Gente que pega filme porque viu na Veja não pode prestar.
— Não, senhor. Está bloqueada porque a pessoa faleceu. Deu sorte mesmo.
— Ah… Que bom!
— Coitado.
— Quê?
— Tadinho dele, né, senhor?
— É. Agora, dá meu filme.
— Senhor, não posso. Ele precisa ir pra prateleira e o senhor pega de lá.
— Como?
— Sim, são as regras.
— Mas a locadora tá cheia. Tem um monte de gente na frente da comédia.
— Vá se posicionando, senhor.
— Não acredito nisso.
— Aqui… Só pro senhor…
— Ã…?
Pshhh… Vou colocar no canto esquerdo, quase no drama. Gostei do senhor, tá?

O Bilhete

Esbarraram-se em frente ao elevador. Sentiu a mão dela, discreta, no bolso de seu casaco. De certo deixara um bilhete, uma mensagem secreta. Cada um foi para seu lado. Ele para a Ouvidoria, ela para a esquerda. Nunca haviam trocado uma só palavra. A não ser quando pretendeu o ramal 13, mas ligou para o 31. “Sim?”, “Ã… Almox?”, “Não, Expedição”, “Ah, desculpe”. Às vezes cruzavam-se pela portaria, pela porta giratória de vidro. Um saindo, outro entrando.

Ela era esquisita. Nem sempre bem vestida. Ele estava curioso sobre o bilhete, mas não podia checar a nota na frente dos colegas. Poderia ser uma denúncia. Sentou à mesa e iniciou sua rotina. Sentia-o em seu bolso, mesmo um simples pedaço de papel. Tinha algo ali. O calor daquela mão ainda marcava sua cintura. Se lesse na frente de todos, despertaria atenção. Todos viram o esbarrão. Os da Ouvidoria não deviam relacionar-se com nenhum funcionário de outros setores, ainda mais sorrateiros, como ficaria a impressão. Precisavam ser justos e imparciais. Baixou seus emails. Respondeu os mais simples. Não havia espaço em sua mente para os complexos. Faltavam três horas para o fim do turno. Sua cabeça ocupava-se com a imagem de um recorte de caderno pautado, escrito com caneta azul, dobrado em quatro. Poderia trazer apenas um nome que o levasse a uma investigação. Quem sabe um número de telefone? Um endereço? Algo sobre o colega do lado? Sobre seu chefe direto? Toda discrição era pouco. Pensou em ir ao banheiro e ler, mas por segurança até as cabines eram vigiadas. Seu telefone tocou. Era uma solicitação de algo que não entendeu muito bem, mas concordou. Estava focado no bilhete. Não conseguiu fazer nada produtivo naquele dia. E se fosse pra casa alegando mal-estar? Claro que despertaria atenção. Estava controlando até seu semblante, fingido passividade e leveza, dando algum sorriso esporádico provocado por um possível email bem-humorado. E assim foram-se as horas.

Desceu no elevador com alguns colegas. Seu bolso pulsava. Despediu-se. Bateu o ponto. Antes de entrar na garagem do prédio, espiou para a Expedição. Ela estava lá, com a cabeça baixa, empacotando alguma coisa. Não o viu. Ela era mesmo esquisita, porém simpática. Entrou em seu carro com vidros escuros. Por um momento pensou estar protegido das câmeras de vigilância, mas o tempo anormal que levaria parado para ler causaria estranheza. Tudo era vigiado. Sabia melhor que ninguém. Deu partida e seguiu seu trajeto habitual. Checou pelo retrovisor. Não havia ninguém em seu encalço. Não aguentaria até em casa. Dobrou em uma rua sem saída, estacionou. Deixou o motor ligado, caso precisasse arrancar de repente. Colocou a mão no bolso. Sentiu o papel. Ele ainda estava lá. Existia de fato. Não fora só sua imaginação como chegou a cogitar. Mas não se tratava de um bilhete.

Era uma bala de coco. Ficou confuso. Depois, feliz.

Foi dormir pensando o quanto ela era esquisita de fato.