O Quarto Escuro

Entrei no quarto escuro. Puro breu. Fui tateando as paredes, sentindo a textura, procurando pistas do que havia ali. O tato dizia que a tinta era preta. Será? Com o pé, senti o rodapé. Devia ser preto também, pois não refletia nada. O piso, liso, mas não escorregava. Não era parquet, pois parquet a gente sente as tabuinhas. Também não era carpete nem lajota. Não fazia inhec-inhec, então, não era emborrachado. Não havia janelas, marcos nem tapetes. Em pouco tempo, já não sabia mais onde era a porta por onde entrei. O lugar era grande. Me desnorteei. Voltei, fui adiante. Cruzei a sala pelo meio, mas do outro lado parecia tudo igual. Continuei pelas paredes e achei uma saliência. Um cartaz. Não, uma plaquinha de sinalização, talvez. Lembrei do celular no meu bolso. Liguei para iluminar. Era uma placa, mesmo. Dizia: “não use flash”.

As Sinaleiras de Paris

— Pai.
— Fala, filha.
— Por que a sinaleira das pessoas fecha bem antes de abrir a dos carros?
— Ah! É mesmo! Quer saber por quê?
— Quero.
— É assim: é que tem que dar tempo para a pessoa, que começou a atravessar bem no momento que fechou, conseguir chegar ao outro lado sem que abra para os carros.
— Hmm! Mas eu cheguei no outro lado e a dos carros continuou fechada por muito tempo.
— Ah, mas é que nem todas as pessoas são tão rápidas quanto uma menina ágil e saudável como tu.
— Ai, pai!
— Então, eles medem com uma pessoa mais lenta.
— Que pessoa?
— Quer saber mesmo?
— Quero! Quero, pai!
— Olha, aqui em Paris, a prefeitura tem três velhinhas, com cerca de 90 anos. Elas têm escoliose, osteoporose e calo no pé. São as criaturas mais lentas que se tem notícia.
— Poxa!
— E elas usam bengala.
— Claro, né? Com tanta doença!
— Aí, todo dia de manhã, eles largam as velhinhas em um ponto da cidade para caminharem aleatoriamente.
— Coitadinhas.
— Elas levam um GPS na bolsa, como o do celular do pai, só que é um próprio para isso. Esse aparelho sabe direitinho em qual esquina elas estão e marca o tempo que levam para atravessar cada rua.
— Nossa! Que massa!
— Está incluído o tempo que elas param e se coçam no meio da faixa de pedestres. Porque velhinha sempre se coça um pouquinho, né?
— É mesmo!
— No final do dia, a prefeitura recolhe as três velhinhas, pega seus aparelhos e transmite as informações para um computador.
— Show!
— Ele controla o tempo de todas as sinaleiras de Paris.
— E as velhinhas não ficam cansadas?
— Ficam. Claro. Às vezes algumas até morrem trabalhando.
— Sério?
— Sério. Por isso, eles estão sempre convocando outras velhinhas para este serviço.
— Puxa, pai. Tu sabe tudo mesmo, hein?
— Quase tudo. Quase tudo.

Bagagens

Esteiras de aeroportos me instigam. Trezentas malas — a maioria preta e da mesma marca. Cento e cinquenta passageiros na dúvida sobre qual é a sua. Alguns colocam fitinha colorida no zíper, outros adesivam para diferenciarem o que é seu. Um tipo menos apegado às coisas materiais pintou suas iniciais em letras garrafais com tinha branca (provavelmente Liquid Paper).

Cada valise tem sua personalidade (ou a de seu dono) que a distingue. Tem as que deslizam explodindo de tão cheias, com os fechos arregaçados; outras mirradinhas, típicas de quem não tinha uma menor ou pretende trazer muita coisa na volta. Tem aquelas de couro, gigantes, antigas, de avô, que deitadas trancam na borda da esteira e de pé não param, de tão finas. Tem sempre uma caixa de papelão, de alguém aproveitando uma promoção para fazer sua mudança, ou um saco todo estropiado, que não entendo como deixam passar no check-in.

E assim vão os passageiros, se acotovelando para conseguirem um lugar na margem desse rio de bagagens. Alguns pegam o que não é seu, mas logo percebem o erro. Tem os que reconhecem a sua pelo tato. Sim! O dono desenvolve uma afeição tal pela mala que vira uma questão de pele — uma relação de anos. Enfim, mesmo com tanta semelhança, as cento e cinquenta pessoas conseguem encontrar seus pertences sem traumas e, praticamente, dispensando a conferência dos recibos na saída para o saguão.

Tem gente mais afeiçoada por sua mala do que pelos seus próprios filhos. Se crianças de menos de cinco anos pudessem ser despachadas como bagagem, teríamos maiores problemas de identificação: “Não é esta. A minha usava brinco!“; “O meu não estava sangrando. Quero um novo!“; “Tem certeza que a sua era uma menina, senhora?“, “Que eu me lembre, sim. Bom, de rosa eu sei que estava, pelo menos.

Ah, bagagens…

(Crônica resgatada e re-editada de minha coluna Vertebral, do Jornal Noite & Cia.)

Undernet

Primeiro veio a Internet e a teoria da globalização, alastrando-se como uma praga em progressão geométrica. Depois os blogs, e todo mundo podia se manifestar em uma democracia anônima. Veio a globalocalização e a cauda longa, prevendo um futuro menos massificado e dando força às diferenças. Veio o Google, oferecendo o mundo em troca de você. Vieram as redes sociais e a inclusão digital, para que todos pudessem ter um terreninho no céu, quer dizer, na nuvem. Chegaram os smartphones e, de repente “mobilidade” virou não precisar mais levantar a bunda do sofá pra nada. E aí vieram o Facebook e os aplicativos — a internet dentro da Interrnet — e todo mundo ficou fichado. Não é mais você que busca a informação, mas é a informação que você acha precisar que te encontra. Pra quem pensava que era só Google que iria monitorar sua vida, Mark Zuckeberg tem dezenas de dados sobre seu perfil e tá vendendo sua pseudoprivacidade. Curte?

A web vai perdendo força e a interação passa a se dar em ambiente mais controlado que a China comunista. Antes você ligava a televisão, agora liga o Facebook. Antes você era um anônimo mudo na multidão; agora, um identificado gritando na multidão.

O próximo passo é a revolução armada de ideias. Os blogs vão voltar como rebeldes defensores de uma cultura perdida. Será a Undernet. E vai ser cult pra caralho. E ciclicamente…

Sinceridade, Que Merda!

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Tem quem ache que sinceridade é uma grande qualidade do ser humano. Eu não. Também não é a pior, óbvio. A questão não é essa. O fato é que sinceridade não eleva o caráter de alguém mais do que um nível. Um filho da puta sincero só é melhor do que um filho da puta falso.

Tem gente que gaba-se por ser e esquece de avaliar suas demais características. Não estou dizendo que não se deve ser sincero e nem depondo contra quem é. Que fique claro.

Hitler foi um sincero incondicional. Conseguiu cativar uma nação sem esconder suas ideologias, aliás, pregando-as. Sinceridade não leva ninguém para o céu. Se sua maior qualidade é essa, e se você acredita em Deus, prepara-se para queimar no fogo do inferno, ou arranje urgente uma personalidade mais rica em valores.

Famiglia e a Cidadania Italiana

Imagem meramente ilustrativa

Minha mulher, Stela — italiana pura de pai e mãe — tem direito a solicitar sua cidadania nesse país. Por ser algo bem complicado e demorado de agilizar, nunca foi atrás. Porém, surgiu uma oportunidade. O tio dela encaminhou toda a papelada, que inclui certidões de nascimento e casamento de toda sua ascendência. Portanto, o caminho está aberto, basta dar entrada como “portador de título” (brincadeira). Ou seja, se já há alguém da família que requisitou, é só informar o número do processo e tudo sai mais rápido.

A segunda boa notícia é que como o esse tio é o irmão da mãe e não do pai, a possibilidade de cidadania é ampliada pra mim, “o marido”. Logo eu, um reles mistureba de português, francês e sabe-se-lá-o-quê-mais (inclusive italiano). Fiquei pensando nas vantagens de ter um passaporte da Comunidade Europeia, mas me ocorreu algo perturbador: ao se tornar cidadão de um país qualquer, imagino que se adquire não só os direitos de seus compatriotas como também os deveres. E aí a coisa começa a pegar. Quais seriam os deveres de um italiano?

Imagino a lista:

– é proibido cortar o macarrão;
– só é permitido fazer pizza Margherita, com mussarela de búfala, molho de tomate e manjericão;
– é preciso aprender truco jogando, e tendo as regras explicadas durante o próprio jogo, por um italiano ou descendente puro, que não admite substituir os termos técnicos e nomes de jogadas e macetes por outros mais didáticos — tipo aprender a falar japonês com um japonês que só fala japonês;
– há de se tomar vinho caseiro em toda refeição, em uma quantidade que projete a soneca pós-refeição;
– polenta pré-pronta nem pensar — tem que ser feita no muque com apenas farinha de milho, água e sal;
– deve-se receber italianos, membros distantes da família, uma vez por ano, durante 3 semanas, em nossa casa no Brasil — país que eles adoram porque tudo é mais barato — e levá-los para fazer compras em Ciudad Del Leste, Paraguay.

Que Colher Você Quer?

Vejo muita gente que não sabe distinguir colheres pelo nome. Sei que não é tarefa fácil, claro. Então, resolvi fazer um guia prático e ajudar essas almas aflitas.

– Colher de café: a pequeninha, usada para mexer cafezinho.
– Colher de chá; a pequena, usada para mexer chá.
– Colher de sobremesa: a média, usada para comer sobremesa.
– Colher de sopa: a grande, usada para comer (ou tomar) sopa.
– Colher de arroz: a grandona, usada para servir arroz.
– Concha: só tem este nome porque já existe uma colher de sopa, usada para servir sopa.

Se você tiver alguma dúvida, pode perguntar que eu respondo, com prazer e alguns palavrões.

Impasse Providencial

Decidiu. Se mataria. Mas não sem uma nota de adeus. Algo que reconfortasse os seus. Iniciou:

“Suicidei-me pois já não…”

— “Suicidei-me”, não — pensou. Ainda não tinha o feito. Começaria mal faltando com a verdade. Precisava ser o mais correto e verossímil possível. Era imprescindível o mínimo de consideração com os sentimentos de quem ficaria. Começou de novo:

“Suicidar-me-ei pois já não mais…”

Paranoico com a língua, não abria mão da mesóclise, mas o verbo no futuro o inquietou. Ainda não tinha cometido o ato. E se não fosse eficiente? Se não conseguisse? Afinal, tratando-se de suicídio, os mais experientes e competentes só o fizeram uma vez e não o farão novamente. Tinha grandes chances de falhar e, outra vez, estaria incorrendo em inverdade com quem deveria ser sincero.

“Tentarei suicídio pois já…”

— Porra, que merda de carta póstuma isto vai ficar? Serei lembrado como um perdedor, ainda mais se fracassar.

Desistiu. Foi trabalhar.

Eu Tenho. Você Não Tem

Homem é bicho curioso. Ao mesmo tempo que gosta de exclusividades, adora contar as suas para os outros; o que descobriu; o que só ele conhece.

Sabe aquele restaurante que “só você” vai, meio esquisito, mas que tem “uma sopa de capeletti que-vou-te-contar”? E aquela banda islandesa que nunca ninguém ouviu falar, faz “um som maneiro”, a vocalista tem uma tatuagem na testa, não tem guitarrista, mas uma harpa no lugar? Ou então o mecânico, lá do Pestano, que “fez curso na NASA”, sabe tudo de motores, mas se instalou em Pelotas porque a família é daqui e quer “qualidade de vida”?

Todos temos nossos tesourinhos. O estranho é que, ao mesmo tempo que gostamos de espalhar para os quatro ventos nossas descobertas, quando se tornam de todos rejeitamos; achamos que viraram pop demais; que estão muito concorridas. Para esses casos, temos sempre a deixa na ponta da língua: “eu frequentava esse restaurante desde que abriu, era muito bom, mas agora já não são mais os mesmos”; “ficaram muito comerciais, o primeiro disco é que era bom, quando tinha o baixista aquele”; “ah, ele não trabalha mais direito, tem muitos clientes, não se atualizou; tô levando na concessionária”.

O homem vive em busca de um reconhecimento estranho por algo que não é dele. Não se dá conta que o tesouro é mais importante que a descoberta. Se sente frustrado quando não recebe o crédito por ter compartilhado algo e acaba descarregando sua fúria e desdém em quem deveria levar os louros: o autor. Seria um tipo de inveja?

Já ouviu o último do Vinx? Um cantor com voz linda que fazia backing vocal para o Sting na turnê do CD “The Soul Cages”: www.vinx.com. Mas o melhor é o primeiro.

Exercício de Redação – Linhas

Publiquei o texto “Linhas” em 13 de janeiro de 2007 neste blog. Tinha-o como um dos meus melhores, na lembrança. Hoje, resolvi reler. Que vergonha! Ainda gosto do argumento, mas que coisa mal escrita. Como a gente pode evoluir tanto em 4 anos (mesmo ainda sendo fraco)? Decidi, então reescrevê-lo e publicar aqui, trecho a trecho, as partes originais e suas refações. Exercício bacana. Em itálico o antigo, em normal, a mudança.

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Linhas

Um passo curto, outro comprido, outro comprido, outro comprido, outro curto de novo. Não havia forma correta. Dependida da calçada; do piso do lugar.

Um passo curto, outro comprido. Outro comprido, outro comprido. Outro curto de novo. Não havia forma correta. Dependia da calçada; do piso do lugar.

Não pisava nas linhas do chão. Caminhava irregular para não apoiar o pé, por um piscar de olhos que fosse, sobre uma emenda de calçada. Mania comum. Boba. Coisa de criança. Tinha que fazer e fazia desde sempre e pronto. Apenas não pisava.

Não pisava nas linhas do chão. Caminhava irregular para não apoiar o pé sobre uma emenda de calçada sequer. Mania comum. Boba. Coisa de criança. Fazia desde sempre. Não pisava.

Não sabia exatamente o que aconteceria se quebrasse a regra que ele mesmo havia criado, mas muitas vezes imaginava. Uma só linha pisada e o chão ruiria sob seus pés.

Não sabia o que aconteceria se quebrasse a regra, mas imaginava. Um só descuido e o chão ruiria sob seus pés.

Cada erro poderia ser um dia a menos na vida de alguém que amasse. Morreria um urso panda – que já eram poucos, ele sabia, e os achava bastante simpáticos. Cada rejunte pisado apagaria uma das linhas das palmas de sua mão. Lembrava sempre dessa nos momentos que não conseguia pensar em nenhuma nova. Era da que mais gostava.

Cada erro poderia ser um dia a menos na vida de alguém que amasse; morreria um urso panda — que já eram poucos e bastante simpáticos. Cada rejunte pisado apagaria uma linha da palma de sua mão. Lembrava dessa sempre. Era a que mais gostava.

Quando perdia o foco da regra e encostava em uma linha, por pensar em outra coisa, como olhar para os lados para atravessar a rua ou encher a boca d’água com a carrocinha de picolé, checava rapidamente as mãos para ver qual a linha havia desaparecido. Muitas vezes não sabia certo o lugar de onde alguma teria sumido, mas imaginava. Em outras, tinha certeza: “havia uma linha bem aqui, eu sei”.

Quando perdia a concentração e encostava em uma linha, checava rapidamente qual havia desaparecido de suas mãos. Às vezes não sabia certo de onde teria sumido, mas imaginava. Em outras, tinha certeza: “havia uma linha bem aqui, eu sei”.

Se algo desse errado na vida, se alguma coisa que esperasse muito não acontecesse, lembrava da calçada exata onde tinha cometido o erro e da linha em sua mão que havia apagado. Chegou a pensar em consultar com freqüência uma profissional de quiromancia, para saber melhor a que se referiam as linhas que haviam sumido. Mas não fez. Não acreditava nessas coisas.

Se algo desse errado na vida ou deixasse de acontecer, lembrava da calçada exata onde tinha falhado e da linha da mão que havia apagado. Cogitou consultar uma profissional de quiromancia, para saber a que se referiam as linhas desaparecidas. Mas não o fez. Não acreditava nessas coisas.

Preferiu tirar cópias de suas palmas na copiadora do escritório. Registrava uma imagem de cada uma por dia e pendurava na parede do quarto. Assim poderia aferir visualmente o resultado de suas falhas, de suas distrações, e a quantidade de acontecimentos que ainda estavam por vir.

Tirou cópias das mãos no xerox do escritório. Registrava todo dia e pendurava no quarto. Assim, aferia visualmente a evolução de suas distrações e a quantidade de acontecimentos que ainda restariam.

Quando acabou o espaço nas paredes do quarto, teve que iniciar na sala. Planejou que o próximo cômodo seria o banheiro. As palmas estendidas nas paredes davam impressão que pessoas estavam presas atrás dos tijolos, empurrando, tentando sair.

Quando acabou o espaço nas paredes do quarto, continuou na sala. O próximo cômodo seria o banheiro. As palmas estendidas pela casa pareciam pessoas presas atrás dos tijolos, empurrando, tentando sair.

Aos poucos, foi tendo explicação para cada expectativa frustrada, cada plano desfeito, cada dia monótono. Os dias, os meses, os anos passavam e as palmas dependuradas foram ficando cada vez mais lisas como as plantas de seus pés. Parecia um papel de parede degradê; do escuro pro claro; de cima a baixo, da esquerda para a direita.

Aos poucos, tinha explicação para cada expectativa frustrada, cada plano desfeito, cada tarde monótona. Os dias, meses e anos passavam. As palmas nas paredes eram cada vez mais lisas, como as plantas dos pés. Parecia um papel de parede degradê; do escuro pro claro; de cima a baixo, da esquerda para a direita.

Sua vida também ficava cada mês mais vazia. Nos finais de semana, quando não ia ao escritório e não tirava cópias das mãos, analisava suas palmas o tempo todo e comparava-as com as imagens da sexta-feira.

Sua vida também esvaziava. Aos finais de semana não ia ao escritório. Sem novas cópias, analisava suas palmas o tempo todo comparando com as imagens da sexta-feira.

Já era fácil contar quantas linhas que restavam. Queria guardar uma para encontrar o amor da sua vida, outra para fazer um filho, outra para pedir demissão do seu emprego, outra para ter muito dinheiro – mas só o suficiente para não se preocupar mais com isso –, outra para fazer parar as guerras (ou será que para isso o correto não seria guardar, mas apagar uma linha?).

Já era fácil contar as linhas restantes. Guardaria uma para encontrar o amor da sua vida, outra para fazer um filho, uma para pedir demissão do seu emprego, outra para ter dinheiro — só o suficiente para não se preocupar mais.

Todavia restavam poucas e algumas realizações consumiriam, sem dúvida, muito mais do que uma delas. Achou melhor pensar em destinos menores, que consumissem menos linhas. Queria uma linha, então, para ter um aeromodelo, outra para tomar um café na sua esquina favorita, outra para que seus amigos estivessem lá, outra para um abraço apertado em alguém, outra para ir visitar sua mãe no Natal e outra para dar adeus.

Todavia restavam poucas e algumas realizações consumiriam, sem dúvida, várias delas. Achou melhor pensar em destinos menores, que consumissem menos linhas. Guardou uma, então, para um aeromodelo, outra para tomar café na sua esquina favorita, uma para que seus amigos estivessem lá, para um abraço apertado, para ir visitar sua mãe no Natal e outra para dar adeus.

Acordou, olhou pela janela e percebeu que a cidade estava vazia. As linhas em suas mãos já não eram suficientes para que as pessoas fossem às ruas. Saiu para ver. Os carros não andavam, as nuvens não passavam. Havia pássaros caídos, com as asas abertas, como que congelados entre uma batida de asas e outra. Alguns sinais estavam abertos, outros fechados, outros amarelos. Mas não mudavam mais de cor.

Acordou, olhou pela janela e percebeu a cidade vazia. As linhas em suas mãos já não eram suficientes para que as pessoas fossem às ruas. Saiu para ver. Os carros não andavam, as nuvens não passavam. Havia pássaros caídos, como que congelados entre as batidas de asas. Alguns sinais estavam abertos, outros fechados ou amarelos. Mas não mudavam mais.

As vitrines exibiam televisões fora do ar. Os luminosos não piscavam, os ponteiros dos relógios não se mexiam e as árvores não dançavam com o vento. Ele nem mesmo soprava. Voltou para casa, tomando cuidado excepcional – com uma atenção que jamais havia tido – para não pisar em nenhuma outra linha. Dessa vez era fácil. Não havia semáforos para cuidar, sorvetes para salivar. Chegou em casa e não pisou no marco da porta, atravessou a cozinha na ponta dos pés, por entre as lajotas pequenas. Levou meia hora para cruzar o corredor, porque era de parquê. Deitou de lado na cama e nem se cobriu com o cobertor listrado, por precaução. Colocou o rosto próximo aos joelhos e fechou as mãos com toda a força. Quantas linhas ainda restavam? Talvez só uma. Preferiu não olhar.

Vitrines exibiam televisões fora do ar. Luminosos não piscavam. Ponteiros de relógio não se mexiam. Árvores não dançavam com o vento. Ele nem mesmo soprava. Voltou para casa, tomando cuidado excepcional para não pisar em linha alguma. Pulou o marco da porta, atravessou a cozinha na ponta dos pés, por entre as lajotas pequenas. Levou meia hora para cruzar o corredor de parquê. Deitou de lado e nem se cobriu com o cobertor listrado, por precaução. Colocou o rosto próximo aos joelhos e fechou as mãos com força. Quantas linhas restavam? Talvez só uma. Preferiu não olhar.