É um salão de beleza chamado “Saloon”. Cabeleireiros, manicures, depiladoras; essas coisas. Todos vestem-se como no velho-oeste. Eles de chapéu de cowboy, botas, coldres. Ao invés de pistolas, secadores de cabelo, pentes e tesouras. Elas de vestidos com armação e mangas bufantes. A porta de entrada é de vai-e-vem, bipartida — “nhec, nhec, nhec”. Na sala de espera há mesas de bar. Na recepção, atrás do balcão, um barman de colete e tira preta no braço, como um croupier, serve uma dose. Ao piano, um tipo não-sei-de-nada-estou-aqui-por-acaso dedilha um tema de briga dos filmes do Trinity. Clientes têm coxo e vaga garantida para seus cavalos — mas quem vem montado? Na parede um cartaz “Procura-se” traz a foto de um tipo com mullets. Lava-se os cabelos em tinas de madeira perfuradas por balas. A cada por-do-sol, um duelo: a cowbiba da primeira cadeira enfrenta a bandida da última. O Saloon para para ver. De quem será o dedo mais inquieto e que disparará o secador primeiro? A vencedora fará o corte do bofe da cidade vizinha que vem de dois em dois meses cortar o cabelo. Você está no Saloon.
Categoria: Ensaios
Pretensões literárias ou simplesmente falta do que fazer.
Esse Amor Não Existe
Isso que chamam de amor não é amor. É paixão.
Amor é o resultado da convivência. A paixão vem de qualquer lugar, em qualquer tempo, sem avisar.
O amor enxerga tudo e aceita, é submisso e complacente. A paixão é cega, vai passando por cima de tudo e nada mais interessa. Tudo tem menos importância.
Amor é passivo. Paixão é ativa. O amor é racional. A paixão é animal.
A paixão é o nosso instinto gritando lá de dentro, querendo sair a qualquer preço. O amor é a jaula onde ficamos sendo alimentados e visitados por turistas.
Amor é escrever e revisar. Paixão é deixar o texto fluir.
Amor é ceder tanto até o ponto de você não ser mais você mesmo. Paixão é deixar-se levar pelo que você é e quer.
O amor faz com que você perca sua identidade em nome de uma nova, conjunta. A paixão é você por inteiro, se jogando de cabeça.
O amor é o resultado de um contrato entre as partes. É acomodação, procrastinação. A paixão é cada um por si. É correria, adrenalina.
O amor é muito mau. É como uma erva daninha que arranca nossos sentimentos; nos torna frios, calculistas, doentes. A paixão nos faz querer viver. Cura a mente e o corpo.
O amor não termina, a gente se acostuma. Pode durar para sempre. A paixão tem prazo de validade. Ela só sucumbe à chegada o amor.
Quando não se confirma, a paixão fica guardada no fundo do nosso mar e, a qualquer estímulo, pode voltar à tona novamente com os pulmões cheios. O problema é que toda paixão tende a virar amor.
Li uma vez que o contrário de amor não é ódio ou raiva, mas medo. Faz sentido, pois o amor nos coloca em uma zona de conforto de onde temos receio de sair. Lá, temos a sensação de segurança. Arriscaria que o oposto de paixão é amor.
Todos precisamos de paixão para viver. Seja pelo trabalho, por uma pessoa, por um projeto de vida. É o que nos mantém vivos, nos levanta da cama, nos enche de adrenalina e nos faz querer viver para sempre.
O segredo é se manter apaixonado. Como faz, não sei. Pensando bem, nem quero descobrir. Se souber, deixa de ser paixão e fica parecido com amor. Mas juro que estou tentando um meio termo. Ah, nós humanos…
O Que Todo Homem Deseja
Cedo da manhã, de saída para o supermercado, mulher se despede do marido que está acordando.
— Tchau, amor.
— Tchau.
— Quer alguma coisa?
— “Alguma coisa”?
— É.
— Tipo “qualquer coisa”?
— É. Qualquer coisa. Tô indo ao supermercado.
— Tipo, gênio da lâmpada?
Fingindo acompanhar o bom-humor matinal do marido:
— É. ”Tipo gênio da lâmpada”.
— Quantos pedidos?
— Vamos logo, Breno! Tô com pressa.
— “Quantos pedidos?”, eu perguntei.
— Um. Só um pedido!
Se fossem três, certamente arriscaria queimar o primeiro com a tradicional técnica que desenvolveu mentalmente durante a vida, para caso um momento desses acontecesse: “eu quero ter pedidos infinitos”. Porém, como era um só, preferiu não correr risco de desclassificação e resolveu ser certeiro, inequívoco; pedir aquilo que todo homem almeja ao acordar com sua ereção matinal:
— Um boquete.
Ela não trouxe nem um iogurte.
Pais e Filhos — Sinal dos Tempos
Pai, do tipo empresário, ocupado com seus afazeres diários, com o celular em um ouvido e o fixo em outro, telefona para o colégio da filha.
— Alô.
— Olá! Ouvi dizer que hoje teria reunião de pais da turma da minha filha. Pode me confirmar, por favor?
— Pois não, senhor. Em qual ano ela estuda?
— Ã… Ã… Puxa…
— O senhor não se lembra em qual ano sua filha estuda, senhor?
— Bom, faz uns dois ou três anos que ela estuda nesta escola… Deixa eu ver…
— (…)
— Ela estudou em uma escolinha antes, daquelas de bebê. Pré, maternal, essas coisas. Ficou uns anos e, então, foi pra aí. Isso! Está aí faz uns dois ou três anos e, então, ela chegou onde está — pum!
— “Pum“? Meio vago. Concorda?
— Pois é…
— O senhor sabe pelo menos se é no ensino fundamental ou médio que ela estuda?
— Olha, dona… Na minha época não tinha isso de médio e fundamental. Eram primeiro e segundo graus. Me confundo sempre agora. Mas ela é pequena.
— “Pequena”, quanto?
— Assim… Tipo na minha cintura.
— Sei.
— Não! Espera! Essa é a outra. A que eu falo é a maiorzinha; dá mais ou menos no cotovelo. Talvez no peito. Eu sei que ela fica pequeninha quando abraço.
— Senhor, infelizmente, não conseguirei ajudá-lo.
— Não, é?
— Não.
— Puxa. Era tão importante eu ir nessa reunião, né?
— É. Reuniões de pais são tipo reuniões mesmo. Dessas que o senhor deve estar acostumado. A única diferença é que os pais vão nelas.
— Sim, claro. Com certeza. Geralmente, a mãe é que faz isso. Ela vai sempre. Superimportante, mesmo.
— Uma dica que dou é que os pais olhem sempre a agenda dos filhos. É onde as professoras anotam os recados.
— Agenda! Agenda! Sempre esqueço. Não tenho tido tempo pra isso. Um post-it, assim, colado no bracinho dela, ou na testa, se não incomodar muito, poderia ser adotado como procedimento para avisos?
— Como, senhor?
— Nada. Deixa.
— O senhor não tem o telefone de alguma amiguinha para ligar e perguntar?
— Acho que nessa idade elas ainda não têm celular. Ou têm?
— Senhor, “ligar para os pais delas”, quero dizer.
— Ah, nem pensar. Nem conheço. Nem sei se já morreram, se estão vivos, se são os tios que cuidam delas…
— Bom, sendo assim… Posso ajudar em algo mais?
— Ah! Lembrei de uma coisa que talvez ajude.
— Sim…
— Ela vai pra aula sempre de uniforme vermelho. Dá pra identificar o ano pela cor do uniforme? Tem, tipo, um código cromático em degradê? Amarelo, primeiro ano; laranja, segundo; vermelho , terceiro…
— Senhor, todos nossos uniformes são azuis. Creio que o senhor ligou para a escola errada.
— Ups.
— (…)
— Bom, então é isso, né?
— Parece.
— Passar bem. E obrigado pela ajuda.
— Até, mais, senhor.
— Até mais.
— Senhor, senhor! Não desligue!
— Sim, pois não.
— Para seu conhecimento, não há nenhuma reunião de pais em nossa escola hoje.
— (tuu, tuu, tuu…)
Fundar Um País?
E se eu fundasse um estado ou um país? Seria massa.
Nenhum órgão fiscalizaria meus atos. Não deveria prestar contas a ninguém. Poderia ser membro das Nações Unidas e pleitear recursos de algum projeto em prol dos países subdesenvolvidos — pro meu! Mas abdicaria do meu direito de voto, para não complicar nem correr riscos de cometer algum incidente diplomático. Meu blog seria o Diário Oficial e meu mp3-player a rádio estatal. A segurança eu mesmo faria. Se houvesse alguma ocorrência maior, como arrombamento da porta da minha casa, pediria auxílio à ONU. Afinal, seria uma questão de invasão de fronteira. Os Estados Unidos certamente viriam me proteger, bons samaritanos que são.
Criaria minha própria moeda. Ou melhor, adotaria uma existente e estável. Teria câmbio e regras fiscais próprias, que me favorecessem, claro.
As importações estariam liberadas, sem cobrança de taxas alfandegárias. Chegaria todo dia um pacote da Deal Extreme, sem necessidade de custar menos de US$ 50. Chocolates belgas, bacalhau norueguês, eletrônicos a preço de banana. Compraria o melhor do mundo por um preço inacreditável. Em troca, exigiria acordos comerciais que me permitissem exportar meu trabalho para o mundo inteiro sem incidência de impostos.
Teria hino, brasão e bandeira. Desfilaria na abertura dos Jogos Olímpicos e representaria meu país em qualquer esporte para o qual conseguisse um índice olímpico. Vale Wii Golf?
Seria famoso, claro — “o país de um homem só”. Poderia vender camisetas, bonés, canecas, mouse pads. Criaria um canal de donativos conhecido como Óbolo do Cuca. Não confundir com “lóbulo do Cuca”.
Não é má ideia. Se o Vaticano conseguiu…
(a bandeira acima criei randomicamente neste site.)
Cascas de Feridas — Oficina do Carpinejar
Neste fim de semana, participei da Oficina de Crônicas de Fabrício Carpinejar, em Pelotas. Foi muito bacana. O cara é fera e fez com que muitos de nós quebrássemos alguns paradigmas pessoais.
Abaixo, publico o exercício do primeiro dia. Tivemos 10 minutos para escrever sobre um de nossos defeitos. Após a última linha, coloco o final alternativo sugerido pelo “professor” e, sem dúvida, melhor que o meu.
“Arranco todas as casquinhas. Sim, casquinhas. Daquelas de ferida. Não resisto. E olha que tenho muitas. Até as fabrico só para poder cavoucá-las. Minha matéria-prima preferida são picadas de mosquitos. Dão uma coceira enorme. E o melhor é que sou alérgico. Isso facilita o processo. Quando recentes, aproveito a unha mais saliente e faço uma fenda. Fica parecendo uma bundinha. Depois, faço outra e vira uma marca em xis. Mais um outro xis envesado e tenho um asterisco. Nossa, como é bom! Ela fica vermelha. E pulsa. Como pulsa, meu Deus! Quando alivia, começo tudo de novo. Dezenas de vezes.
Com esse processo metódico e paciente, toda picada de mosquito no meu corpo vira uma casquinha de ferida. Quando acontece, posso arrancar em ritual sádico. E sabe o que é melhor? Elas voltam! Sempre voltam!
Tenho uma grande cultura de casquinhas que mantêm sob controle meus instintos mais primitivos.”
Final alternativo:
“Durmo de janela aberta.”
Índio Quer Apito Se Não Der Pau Vai Comer
No Blog du Cuca de hoje, iremos entrevistar o índio Itacuca, que em tupi significa “pão doce coberto com açúcar feito sobre pedra”. Vamos descobrir o que pensa o homem indígena sobre as questões de propriedade e cultura que conflitam com o homem branco.
BLOG DO CUCA — De quem é o Brasil para o senhor?
ÍNDIO ITACUCA — “Senhor”, o caralho. Me chame de “Doutor Itacuca”.
BC — Desculpe, “… para o Doutor?”
ÍI — O Brasil é dos índios. Já estávamos aqui quando vocês chegaram.
BC — Com certeza que sim. O que o “doutor” acha que deve ser feito então?
ÍI— Queremos ter casa, comida, roupa lavada, um carro “bão” na garagem, Unimed, uma bolsa-índio para cada filho e devolução de nossas terras, na proporção de mil hectares para cada um de nós. Você sabe que índio é um povo nômade, vivemos da natureza, não sabe? Precisamos de espaço.
BC — Sei. Mas sendo assim, não seria correto que a cultura do homem branco não fosse misturada com a do índio? Por exemplo, as moderidades que o “doutor” citou não deveriam estar fora dessas exigências para que o índio pudesse ser, de fato e em sua plenitude, índio? Afinal, assim era quando os europeus aqui chegaram e assim estariam até hoje se não fosse a intervenção do homem branco.
ÍI — Você quer dizer devolver a televisão via satélite, a caminhonete cabine dupla, o calção do Flamengo e voltar para o mato?
BC — Exatamente.
ÍI — A gente é índio mas não é bobo.
BC — Pessoalmente, acho que o índio tem direito de ser índio (100% índio) e tem direito de ser cidadão (100% cidadão). Como cidadão ele terá seus direitos e deveres. Misturar é que fica estranho — ter só direitos e não ter deveres é o que todo mundo quer, mas não é justo com o restante do povo.
ÍI — O que não é justo é roubarem nossas terras, matarem nossas famílias em troca de espelhinhos. O homem branco tem que pagar.
BC — Mas isso faz centenas de anos. Os homens de hoje, em sua imensa maioria, não agem assim, têm vergonha dessa face de seu passado e gostariam de honrar as responsabilidades que herdaram. Porém, por outro lado, no Brasil, somos uma miscigenação. Eu mesmo também devo ter em meu sangue tanto índio como negro. Como saber quem é culpado e quem é vítima do passado? Não seria melhor a gente viver em paz, como semelhantes, já que não inventaram uma máquina do tempo com a qual pudéssemos reverter os erros de nossos ascendentes?
ÍI — Mim não falar sua língua. Mim com fome. Podemos pedir para iniciarem o rodízio?
BC — Claro, “doutor”.
Non, non, non!
Meu sogro não é de Pelotas. Não conhece nada aqui. Está nos visitando por um mês. É um “italionon” de 82 anos e marca-passo. Após o almoço, pediu para deixar-lhe no Centro quando eu fosse trabalhar. Precisava ir à Caixa Federal da XV e cortar o cabelo. Depois, queria dar uma volta, caminhando sozinho, conhecer o lugar. Anotei o endereço do trabalho, os números dos telefones e dei para colocar no bolso. Pedi que mostrasse seu aparelho celular. Peguei, testei, aumentei o volume da campainha ao máximo e devolvi. Ao largá-lo na esquina do Aquário, indiquei: “a agência é pra lá”. Fui embora.
No meio da tarde, apareceu de volta com cabelo cortado e um livro novo do Augusto Cury — autor que gosta. Deu tudo certo.
À noite, jantando uma bela sopa, que ele mesmo fez, contou onde foi cortar o cabelo. Alguém indicou o Mercado Público sem saber que está em reforma. Foi até lá em vão, mas acabou encontrando o local provisório — aquele buraco fétido na quadra da Khautz pela Andrade.
— É… É um lugar meio feio, improvisado, escuro — falou. Mas cortaram meu cabelo.
Minha sogra, logo se manifestou:
— E se fosse um esconderijo de maconha?
— Ah! Pombas! A senhora sempre pensa o pior!
Quase engasgamos com a sopa.
Me Sinto Estranho
Me sinto estranho parado em uma esquina; esperando por alguém. Não consigo deixar de imaginar que podem questionar o que faço ali; quais minhas intenções. Pego o telefone, finjo alguma consulta. Respiro fundo, demonstrando insatisfação com o atraso de alguém. Movimento-me do meio-fio à parede, inquieto. Afinal, parado, causaria muita desconfiança — não tenho más intenções.
E mudar de sentido enquanto caminho? Seja por um esquecimento de algo que precise voltar e buscar, seja por engano de trajetória mesmo, acabo levando a mão à cabeça pra simular um lapso qualquer. Afinal, quem em sã consciência não tem certeza para onde vai? O que vão pensar?
Também me sinto estranho almoçando sozinho em um restaurante. Não acho tristes pessoas que fazem, afinal é meio-dia e todos comem entre um turno e outro de trabalho. Mas, não sei por quê, deduzo que pensem isso de mim. Prefiro buscar comida a comer fora, mesmo que dê mais trabalho ou leve mais tempo. Na pior das hipóteses, nem almoço. Sentar sozinho, nem em lanchonete.
Por muito tempo também nutria ressalvas em andar com fones de ouvido. Quando adolescente, os walkmans (ou o plural seria “walkmen“?) reinavam, mas poucos os tinham. Não havia essa adesão ao escudo sócio-musical que esses dispositivos portáteis propiciam. Quem usava acabava chamando mais atenção do que se isolando. Deve vir daí meu bloqueio. Prefiro sempre a discrição. Talvez seja um dos motivos pelos quais hoje optei pelos in ear. Recentemente, comprei uns externos muito bons. Ainda estou tomando coragem para usá-los na rua. Me sinto ridículo. No mínimo, estranho.
Mas estranho mesmo, nesses casos, é me importar tanto com o que pensam de mim. Pois, para outros assuntos, na maioria das vezes, estou me lixando. O que você pensa disso?
Boa Companhia
Não tusso, não fungo e não espirro (muito). Não faço barulho para engolir líquidos nem sólidos. Não soluço. Não ronco de lado; eu durmo de lado. Não me engasgo com comida. Não me engasgo com saliva.
Acordo antes. Tomo banho rápido, porém dois por dia. Não deixo toalha em cima da cama. Só sujo um prato. Faço comida. Tiro a mesa. Bebo água.
Caminho 10km sem problemas. Não preciso ir ao banheiro frequentemente. Meu intestino é um relógio. Acompanho passeios, espero em lojas e carrego sacolas. Não reclamo de nada. De quase nada.
Não fico morrendo de fome se não como de três em três horas; nem de cinco em cinco, se necessário. Gosto de tudo, inclusive de provar novidades. Tomo qualquer tipo de leite, do desnatado ao integral. Uso açúcar ou adoçante — o que tiver.
Converso, mas pouco. Não grito. Sou discreto. Eu não encho o saco; mal respiro.
Pensando bem, talvez eu seja um péssimo companheiro de viagem.